Entrevista: Irmã Maria da Cruz – Madre Prioresa do Carmelo da Santíssima Trindade – Guarda
A GUARDA: O dia 2 de Fevereiro é o Dia do Consagrado. Como é que este dia é vivido na comunidade do Carmelo da Santíssima Trindade, na Guarda?
Irmã Maria da Cruz: Este dia é vivido na simplicidade e na gratidão a Deus por nos ter chamado ao Seu serviço na solidão do deserto. Exteriormente renovamos os 3 Votos na Eucaristia.
A GUARDA: A vossa Ordem é de vida contemplativa, o que é que isso significa?
Irmã Maria da Cruz: Como sabe a Igreja é muito rica em carismas dados pelo Espirito de Deus. Um desses carismas são as Comunidades Contemplativas comprometidas pelos três Conselhos Evangélicos. Na vida contemplativa existe uma estrutura de comunhão: a Autoridade; a Formação e a Liturgia. Dessa Estrutura de Comunhão, emergem 3 modalidades de vida: A primeira é a vida CENOBÍTICA: Este estilo é o mais característico do Ocidente, em que quase todas as Ordens Contemplativas femininas se integram aqui. O seu estilo é altamente comunitário, os atos são todos praticamente comuns. Também existe a vida EREMÍTICA PURA. Este modo de vida nascido principalmente no Oriente praticamente já não existe. Existem casos isolados, e podemos referir talvez o Eremita que se instalou na nossa diocese ou então algum Mosteiro ou «Laura» do Oriente. Recordo os Padres e as Madres antigas do deserto ou, mais actualmente os Mosteiros do Monte Atos, Monte famoso e centro de fé de origem Ortodoxa. Finalmente temos a vida EREMÍTICA MODERADA, em que o «deserto», o «silêncio» e a «solidão» abundam uma grande parte do dia, apesar de haver alguns actos comuns. É neste eremitismo moderado que se integra, particularmente, o Carmelo Descalço feminino. O Carmelo nasceu no Oriente, através de uns quantos eremitas, sob a orientação do Patriarca de Jerusalém. Nasceu no Monte Carmelo onde residiu o Profeta Elias, na Antiga Palestina. O grande sinal inconfundível da nossa vida contemplativa está na absoluta orientação para Deus e no intenso desejo de Deus e da Sua Gloria! Esta orientação radical constitui o nosso carisma vocacional, por isso estamos dispensadas do ministério activo e exterior. Jesus, enquanto esteve na terra não abdicou do contacto com o Pai, única fonte da Sua Missão, para não perder a Sua Identidade. Este contacto vital chama-se Interioridade e fecundidade do Espírito! Pois bem, a Igreja possui esse contacto com o Pai na chamada Vida Contemplativa e uma das formas de viver esse contacto é a vida do Carmelo contemplativo, dom explosivo na Igreja, quando é bem vivido. A vida contemplativa ajuda a conservar a identidade da Igreja e o sentido genuíno da actividade apostólica. Disto não tenham dúvidas! Não é por ser Carmelita Descalça que o digo, mas cito uma frase de Santa Edith Stein, que diz: «O Carmelo é a camara mais interior que a Igreja possui». Isto quer dizer que o Carmelo – no seu âmago vital – possui as condições para a revelação do Deus vivo na intimidade mais pura e serena. É como que a alma e o coração palpitante do Amor Divino que confere identidade e sabedoria à Igreja impregnando de santidade os seus membros. Não é por acaso que Santa Teresa de Ávila nos legou a exigência da solidão e do silêncio da Comunidade e de cada Irmã, concretizados na existência de campo, ermidas e o contacto com a natureza, para favorecer a liberdade interior e a experiência do Deus VIVO! Este contacto VIVO, que ultrapassa qualquer experiência humana, torna-nos cúmplices de Deus na mudança dos corações. As primeiras a sermos preparadas a fogo para esta missão somos nós mesmas. Quanto desprendimento até da própria pele, para estarmos disponíveis cada vez mais para Deus! Ninguém pode imaginar o quanto é importante esta metamorfose na nossa vida, por isso não podemos aceitar o mundanismo de sentimentos e de apegos! Eu que fui missionária, sei o que significa trabalhar na missão concreta e o gratificante que é humanamente falando, mas confesso que a revelação de Deus na solidão, em favor da Igreja tem um sabor a plenitude e gratuitidade. Este trabalhar na fé, sem ter resultados concretos, dá a certeza absoluta da sua eficácia divina, e isto é uma aventura muito libertadora.
A GUARDA: Porque diz que a vida carmelita é dom explosivo na Igreja?
Irmã Maria da Cruz: Tenho receio de responder a essa pergunta, porque posso ser mal interpretada, mas ainda assim atrevo-me a fazê-lo. A vocação interior do Carmelo, brota da única Fonte da missão de Jesus e faz parte do interior de todas as vocações na Igreja. Isto não é teoria! O Carisma do Carmelo descalço é chegar a «ser Deus por participação» pelo Amor, como diz São João da Cruz, OCD doutor místico da Igreja. Todas as vocações na Igreja desde as de Vida Consagrada até a uma simples criança estão chamadas a isto que em definitiva é a vivência baptismal, espiritualidade fundante que tanto entusiasmava a nossa Santa Isabel da Trindade falecida aos 26 anos. É o âmago de toda a vocação eclesial! O Carmelo Descalço feminino, pelo ambiente e exigência de vida que tem, modelou muitas Irmãs na intimidade e na Sabedoria de Deus como Dom do Alto. Não falo de manifestações extraordinárias, mas da sabedoria divina que confere luz, liberdade e contacto unitivo com Deus, que é a meta de todo baptizado. São inúmeras as nossas santas e uma boa parte delas bem jovens, e é com agradecimento que o reconhecemos. São santas para a Igreja e não podem nem devem ficar fechadas no Carmelo! De entre elas, por agora, temos duas Doutoras a grande Teresa de Ávila e a pequena Teresa de Lisieux, que de pequena não tem nada! Actualmente a caminho desse doutoramento está a nossa Stª Edith Stein e não vai ficar por aí pois em lista de espera tem a nossa Santa Isabel da Trindade já há alguns anos, pelo menos fala-se disso! Estas gigantes testemunhas, são um incentivo para a Igreja e não só! É uma presença que explode na Igreja e que atinge dimensões impensáveis até ao ponto de sair fora dela! Por isso digo que é um dom explosivo!
A GUARDA: O que é ser Carmelita Descalça?
Irmã Maria da Cruz: É uma pergunta tão simples para mim que não sei responder! Pessoalmente sou alérgica às teorias e descrever o que é ser carmelita descalça pode-se cair numa grande teoria porque a riqueza está no interior e na experiência do Deus Vivo! Recordo que quando vi o filme «o grande silêncio», coloquei-me na pele das pessoas que não vislumbram a riqueza do espírito e que teriam já visto o filme e pensei que talvez tivessem sentido aborrecimento, porque a riqueza e a beleza dessa vida está no interior, e pensei: Não se pode entender a Cartuxa sem o dom do Espírito, e assim repito o mesmo: não se pode entender a nossa vida contemplativo sem o Dom do Espírito. Ao descrever a nossa vida «exterior» corre-se o risco das pessoas ficarem só pelo que fazemos ou não fazemos. A nossa vida feita de serenidade, alegria, liberdade interior e trato de amizade com Deus, dá um tom de eternidade a tudo quanto fazemos e vivemos, e sem esta vida interior tudo seria um grande vazio. Temos as nossas próprias dificuldades neste crescimento e por isso o nosso caminhar é progressivo, mas vamo-nos superando com calma naquilo que pode ser um impedimento à manifestação de Deus. Para mim ser carmelita é a minha própria identidade pessoal que tem a ver com a relação íntima com Deus, e não tanto com aquilo que faço e consigo realizar. É um constante «olhar para ELE e viver NELE» que não cansa! Pode parecer exagerado, mas uma das verdades do Carmelo é a revelação de Deus que dá a experiência de sairmos das quatro paredes e olharmos o espaço. Este espaço é DEUS, abrindo-nos o horizonte colossal da Unidade. Tudo fica muito estreito sem esta visão alargada e libertadora. Quantas vezes o desejo imenso de Deus me faz cantar e dançar para ELE!| Este Amor é uma Pessoa, não é uma ideia bonita, mas que me exige fidelidade de um coração indiviso, fidelidade de intenção e de acção. Isto é o Carmelo para mim! Como posso explicar a minha própria identidade? Esta identidade tem Nome e tem um Rosto concreto e esse Rosto alimenta-me dia a dia..! Vivo de fé impregnada de escuridão e simultaneamente de experiência que muda a existência! Esta vida é simplesmente «ESTAR COM ELE». Há realidades mais «tangíveis» que os nossos abraços humanos…
A GUARDA: como é o dia a dia dentro do vosso mosteiro?
Irmã Maria da Cruz: Muito simples! A nossa vida está intercalada entre trabalho manual, oração e encontro fraterno. Tudo está trespassado pelo silêncio, serenidade e amor fraterno. A nossa vida pode ser definida como um «PERMANECER SEMPRE UNIDAS, ESTANDO POR VEZES JUNTAS!». O nosso trabalho é feito numa oficina, na ermida ou na própria cela (a cela é o quarto individual de cada irmã), sabendo que não temos sala comum de trabalho. Tal trabalho educa-nos para a presença de Deus e por isso não deve ocupar muito a mente e ser feito com devoção e serenidade. A oração litúrgica é feita no Coro da Igreja ou no Oratório. O único encontro fraterno espontâneo que temos, acontece num momento chamado «recreio teresiano» – cerca de uma hora duas vezes ao dia – que a Santa Teresa de Ávila, muito sabiamente, juntou à Regra dos Eremitas, para nos conhecermos melhor a nós próprias e às outras Irmãs. Também temos o momento da Lectio Divina a sós na própria cela, assim como a leitura espiritual, estudo, trabalho etc. A cela é o Sanctum Sanctorum do Carmelo Descalço, ninguém entra lá, é o espaço mais pessoal da Irmã.
A GUARDA: Quantas irmãs se encontram actualmente no Carmelo da Santíssima Trindade, na Guarda?
Irmã Maria da Cruz: Actualmente somos doze Irmãs, graças a Deus. A Comunidade vai crescendo!
A GUARDA: É verdade que há uma jovem que começou a fazer a caminhada de vida contemplativa?
Imã Maria da Cruz: Sim, entrou no dia 8 de Junho passado, dia do Corpo de Deus! Chama-se Rafaela e está muito feliz!
A GUARDA: Quem vos costuma procurar para falar e qual a vossa disponibilidade para ouvir as pessoas?
Irmã Maria da Cruz: As nossas Irmãs Externas, que não estão obrigadas à lei da Clausura, têm uma vocação especial para estarem na portaria e atenderem as pessoas, sejam elas quais forem. Estas Irmãs existem para nos deixarem mais livres para a nossa vida contemplativa que requer serenidade, silencio e solidão. Isto não impede que, em casos especiais possa uma Irmã da Clausura ir atender no Locutório do Mosteiro.
A GUARDA: Como é que as irmãs sentem o palpitar da Guarda, do País e do Mundo, dentro do Carmelo?
Irmã Maria da Cruz: Sentimos como cristãs comprometidas com o Senhor! Nós recebemos visitas, telefonemas, temos Net, recebemos o Jornal e algumas revistas, apesar de não vermos televisão. Sabemos o que se vai passando a nível eclesial, social e político. Escutamos gente de todas as cores políticas e com ideias várias sobre assuntos fundamentais. Aliás, temos bons amigos que são de uma cor política ou ideológica que à primeira vista parece longe de Cristo!. Não somos alheias à política, apesar de não ser o tema habitual das nossas conversas! Não lhe temos aversão, mas apenas o interesse necessário! O nosso único amor e projecto é outro: JESUS CRISTO! E tudo em função d’Ele! Estamos informadas o suficiente e somos livres de fazer o nosso próprio juízo, opinar e votar em consciência. O que nos atrai mais é o sofrimento humano do nosso mundo e do nosso país incluindo, claro está, a Guarda. A nossa vida, votada para Deus, tem um sentido especial de misericórdia para com as pessoas, os inocentes, as vítimas de tanta crueldade e atrocidade e de modo especial os que estão longe de Deus… Como responsável desta Comunidade, tenho obrigação de informar e de formar as Irmãs para uma entrega cada vez mais genuína e generosa ao Senhor, em favor da humanidade que padece grave destruição. Por vezes choro ou choramos quando vejo e ouço notícias que devem entristecer o coração de Deus. Sabemos da insensibilidade moral que é gritante neste mundo e a partir daí tudo se tornou possível. Sabemos as notícias da Igreja e as cisões que se vão manifestando, e sofremos com o tão amado Papa Francisco tantas vezes caluniado…!
A GUARDA: Qual a mensagem que quer deixar aos Consagrados?
Irmã Marai da Cruz: Sempre repito algo que me nasce no fundo do coração todos os dias: «NÃO TE PRENDAS ÀQUILO QUE DE NADA SERVE PARA A ETERNIDADE…», no encontro definitivo com o Senhor, o nosso Amado Senhor, só o que se fez por ELE, com ELE e n’ELE será a nossa paz…