No ensino “criei muitas amizades, abri novas janelas sobre o mundo, ajudou-me a corrigir uma visão quase utópica da Igreja e a viver com os pés mais assentes na terra”

Entrevista: Padre António Carlos Dias Gama

O Padre António Carlos Dias Gama celebra amanhã, 26 de Julho, sessenta anos de ordenação sacerdotal. Ao longo deste tempo foi pároco, primeiro de Vila Franca da Serra, Juncais e Vila Soeiro do Chão e, mais tarde de Capinha, Escarigo e Quintãs. Foi professor durante 37 anos, 12 no particular e 25 no público. Actualmente é capelão da Santa Casa da Misericórdia do Fundão.
A GUARDA: No dia 26 de Julho assinala sessenta anos de ordenação sacerdotal. Que memórias tem desse dia?

António Gama: Há momentos na história de cada um cuja memória nunca se perde mesmo que passados muitos anos e já lá vão sessenta anos. Os sonhos, as ilusões e mesmo desilusões, os sucessos e também fracassos, as conquistas e por vezes derrotas são as memórias que nasceram nesse dia e fazem parte e marcam os meus anos de sacerdócio e só vão morrer na finitude da minha vida.

A GUARDA: Ao longo destes sessenta anos de sacerdócio onde desenvolveu a sua actividade pastoral?
António Gama: Do extremo sul da diocese mandaram-me para o extremo norte, com a informação única, em postal de correio: “está nomeado pároco de Vila Franca da Serra, Juncais e Vila Soeiro do Chão. Pode ir de comboio ou de camioneta mas o comboio fica mais perto”. Tinha falecido o Bispo da diocese e “sede vacante” alguém se encarregou de me traçar a rota através dum frio postal. Era dia de festa na terra e em festa me receberam à entrada na paróquia. O sacerdote que com o povo me veio receber, um sacerdote que era um santo e foi muito amigo, ao ver o jovem franzino de 24 anos, não me estendeu logo a mão de cumprimento mas de braço estendido, dedo apontado e voz sonante proclamou: “Padre, o Senhor Bispo cometeu um crime ao mandá-lo para aqui.”
Doeu-me mas foi um incentivo. Nestas paróquias passei três anos felizes, crente que seria capaz de modificar o mundo. Não o consegui na totalidade mas consegui muito.
Fui depois colocado na Capinha, onde paroquiei 47 anos, em acumulação com Escarigo e Quintãs durante onze anos. Uma crónica destes 47 anos não caberia no jornal. São a história duma vida que foi de família onde muito aprendi e muito dei. Foi-me detectada uma doença grave que não costuma perdoar. Pedi ao Senhor Bispo que me desse a liberdade de viver a meu gosto o pouco tempo que me restava. O Senhor “pensou” de maneira diferente e ainda por aqui ando sempre disponível para ajudar os colegas e o trabalho não diminuiu, antes cresceu. Continuo esperando o dia…

A GUARDA: Considera positiva a sua passagem pelo ensino?

António Gama: Foram 37 anos, 12 no particular e 25 no público, que muito me ajudaram a crescer, a colher as lições da vida, a muito dar e muito receber. Permitiram-me compreender a juventude e também a ser jovem. Criei muitas amizades, abri novas janelas sobre o mundo, ajudou-me a corrigir uma visão quase utópica da Igreja e a viver com os pés mais assentes na terra como se diz habitualmente.
Nunca como nesse tempo a vida foi uma enorme lição de aprendizagem.
A GUARDA: No trabalho que realizou nas paróquias o que é que mais o sensibilizou?
António Gama: Saliento dois momentos. Quando fui para a Capinha vivia-se aí o drama da emigração a salto. Foram momentos muito difíceis para todos, emigrantes, famílias e para mim. Vivia numa aldeia onde as mulheres eram viúvas com marido, as crianças órfãos com pai, autentica imagem dum vale de lágrimas. Os seus problemas passaram a ser também meus e fiz de tudo: escrevia e traduzia as cartas molhadas de lágrimas em que cada página relatava um drama, ouvia sem respostas, matei fomes…até fui passador. O outro foi numa aldeia de latifúndio, onde muitos sofriam autêntica miséria. O desafio foi criar um centro de dia e um lar que ajudasse a minorar aquela miséria.

A GUARDA: Viveu grande parte da sua vida na zona do Fundão. Como vê esta região em termos humanos, religiosos, sociais e económicos?

António Gama: Julgo que o Fundão, nesses campos, é a imagem do País com a agravante da interioridade.

A GUARDA: Quais as suas funções como Capelão da Santa Casa da Misericórdia do Fundão?
António Gama: Há onze anos que fui nomeado capelão da Santa Casa da Misericórdia do Fundão. Aceitei com a condição da nomeação não acarretar qualquer encargo económico para a Misericórdia inclusive os estipêndios das Eucaristias. É a minha doação como irmão.
Celebro 4 eucaristias semanais nas valências da Misericórdia e ainda presido a todas as manifestações de carácter religioso que o compromisso prescreve ou a Misericórdia promove, particularmente na Semana Santa. Esta é a participação visível. Procuro sempre tornar participados os momentos fortes litúrgicos e acompanhar todos os internados em visitas quase diárias (um familiar muito próximo ali está internado). Sobretudo os lares são “confessionários” em que os dramas pessoais e familiares vêm ao de cima. É necessário tempo, paciência, generosidade afectiva e muita disponibilidade. Acabo muitas vezes por ser o rosto visível das dores, sofrimentos, lágrimas e frustrações dos utentes. Claro que isto não se vê nem é matéria do facebook.

A GUARDA: Como olha para o actual estado da Igreja na Diocese e no País?
António Gama: Com muita preocupação mas sempre na esperança de um amanhã melhor.

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