Entrevista: Julieta Ferreira da Silva tem percurso artístico ligado à música tradicional portuguesa
Julieta Ferreira da Silva é natural de França e reside na zona de Trancoso, onde tem ligações familiares. Estudou em França (até ao 8º ano), onde frequentou a classe de acordeão na Escola de Música de Montataire. Em Trancoso (9ºano), Viseu (ensino secundário), Coimbra (licenciatura em Economia), depois virou a página e decidiu estudar Etnomusicologia: Frequentou a pós-graduação em Estudos de Música popular na FCSH – UNL em Lisboa, depois fez o Mestrado em Musicologia na Universidade de Aveiro e ingressou num programa de Doutoramento em Etnomusicologia também em Aveiro, mas que por ora tem suspenso.
Nos tempos livres gosta de caminhar nos montes, estar em família, cozinhar, tocar e cantar sempre.
A GUARDA: Quem é Julieta Silva e como aparece a sua ligação à música popular/tradicional portuguesa?
Julieta Silva: Tenho um percurso artístico ligado à música tradicional portuguesa, que começou com a minha passagem pelo GEFAC – Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, onde tive um primeiro contacto (que me deslumbrou!) com as etnografias e com a sua utilização a um nível performativo. A paixão por esse universo sonoro germinou posteriormente na forma de diversos projectos que integrei, como Chuchurumel, Diabo a Sete, Chukas [primitivos e civilizados], Alacrã (um duo de sanfonas com Carlos Guerreiro) e Las Çarandas, que se debruça sobre o repertório musical da região de Miranda do Douro.
A GUARDA: É importante estudar e divulgar a música popular/tradicional portuguesa?
Julieta Silva: Eu considero imprescindível! A música está presente em todas as culturas do mundo e desde as culturas pré-históricas. A música foi desde sempre uma importantíssima forma de expressão do indivíduo, ao mesmo tempo que permitiu a ligação de pessoas pertencentes a determinadas comunidades pela capacidade que tem de fornecer elementos de identificação ou de pertença a um grupo. As comunidades primitivas eram muito musicais. Hoje há a tendência para uma maior passividade na relação com a música, mas nem assim deixa de ser um elo de ligação entre pessoas. Conhecer as particularidades da nossa cultura musical mais profunda é imprescindível e divulgá-la é um dever, porque sem valores culturais ficamos sem referências, ficamos perdidos. São os nossos valores culturais que nos singularizam como comunidade perante a globalidade do planeta.
A GUARDA: Tem feito um trabalho de pesquisa sobre a música popular/tradicional portuguesa. O que é que a tem surpreendido mais nesse trabalho?
Julieta Silva: Há muitos anos que estudo cancioneiros, romanceiros e obras etnográficas de autores que recolheram junto dos detentores de tradições o seu saber e o anotaram para que esses conhecimentos perdurassem no tempo. Estamos a falar de trabalhos de recolha e de uma preocupação já muito antigos, se pensarmos como Almeida Garrett já se debruçou sobre a tradição oral popular no seu Romanceiro. O que me tem surpreendido é o que eu ainda vou encontrando, hoje, junto de pessoas que ainda conservam na memória certas canções muito antigas, estou a falar desse corpus de textos e melodias que circularam por tradição apenas oral, desde tempos que não se sabe precisar, transmitidas de geração em geração e que ainda hoje é possível ouvir. Essa memória impressiona-me. Porque memorizamos sobretudo aquilo que nos toca muito profundamente, portanto ainda existe, na actualidade, uma ligação emocional a esses temas mais ancestrais.
A GUARDA: A região da Guarda é rica em música popular/tradicional?
Julieta Silva: Todas as regiões são ricas, ou foram ricas, pois todas as comunidades faziam música de forma espontânea, mas se calhar umas esqueceram mais depressa do que outras… Há comunidades que dão uma maior importância e envidam um maior esforço na preservação das suas tradições e talvez na Guarda não tenha havido tanto esse cuidado em relação a outras regiões. Foi também uma zona do país mais descaracterizada pelo forte movimento migratório, mas é certo que hoje ainda me cantam romances muito antigos (é consensual a raiz medieval de alguns temas do nosso Romanceiro) em pleno distrito da Guarda.
É certo que hoje existe uma significativa actividade musical performativa ligada à tradição no distrito, mas há que distinguir o que é recriação para apresentação em palco do que era a prática musical espontânea, em contexto da comunidade local. É sobre essa actividade musical espontânea que se debruçam os estudos e cancioneiros e que tem dado o mote para as recriações que hoje em dia existem.
A GUARDA: Também tem divulgado a música popular/tradicional nos seus concertos. Quais os lugares onde tem actuado?
Julieta Silva: Eu tive uma actividade performativa muito forte há uns anos atrás, depois de sair do GEFAC, em Coimbra, e ter regressado à minha terra, em Trancoso. Tive um interregno porque entretanto fui mãe e dediquei-me muito aos meus filhos. Ultimamente senti necessidade de regressar aos palcos e tenho apresentado concertos em vários locais da região da Guarda, como Manteigas, Trancoso, Seia, Figueira de Castelo Rodrigo, e agora recentemente no Marmeleiro da Guarda num evento relacionado com as tradições locais. Mas este ano também rumei mais para Sul: apresentei concertos na Covilhã a convite da UBI, no Festival dos Caminhos da Transumância “Chocalhos” em Alpedrinha, e ainda nas “Aldeias à Vista” em Luzianes, Odemira. Também apresentei o meu trabalho musical em Trás-os-Montes, a convite do Museu Etnográfico de Miranda do Douro e realizei dois concertos em Santarém. Este verão ainda fui com a Suzana Ruano,do grupo Las Çarandas a Bilbao apresentar o tema que gravámos para integrar o último trabalho do músico basco Kepa Junkera “Erromeriak” e que foi lançado em Agosto perante uma praça de gente entusiasmada. Foi um verão intenso mas tão gratificante!
A GUARDA: como tem sido a reacção do público aos seus concertos?
Julieta Silva: Penso que tem sido boa. Os temas que escolho para os meus concertos são muito especiais para mim e antes de tudo têm de me tocar a mim: por isso há muita emoção na minha interpretação. Acho que essa emoção passa de alguma forma para o público, o que me faz feliz porque é isso mesmo que eu pretendo. Só conseguimos divulgar música que tem que ver com outros tempos e contextos se cativarmos o público para ela e isso faz-se através da emoção, pelo menos é assim que eu penso. Depois acompanho-me de instrumentos que não são muito vulgares. A sanfona, de origem medieval, mas que teve presença em várias épocas em toda a Europa e também em Portugal, suscita sempre muita curiosidade. Depois há a viola Beiroa, ou viola Bandurra, que também cativa a atenção do público: é o cordofone típico da Beira Baixa, que não é muito comum ver-se por aí nos palcos e tem uma sonoridade muito rústica que lhe é conferida pelas cordas de arame. Nos meus concertos também levo uma catrefada de objectos sonoros ao vivo e dentro de uma caixinha mágica (uma loop station) que vai disparando sons a ambientes sonoros. O facto de serem tocados e lançados aleatoriamente durante o espectáculo também mantém o público atento e interessado.
A GUARDA: Quais os projectos em que está a trabalhar actualmente?
Julieta Silva: Neste momento tenho vários projectos em andamento, todos a solo.
“Arriba ao Monte” é uma performance que mergulha no universo da Pastorícia e Transumância que foi criado em 2019 e tem circulado desde aí. Estreei neste verão 2023, também a solo, mais dois concertos: “Ecos de Bandarra à Bandurra”, que são trovas do sapateiro poeta e profeta Gonçalo Anes, o Bandarra, musicadas à viola Bandurra e “Árvores Que Tocam”, um projecto itinerante de homenagem às árvores que [nos] tocam com música das raízes.
Sempre a acompanhar-me, tenho o espectáculo “Bagagem” que é um projecto que está continuadamente a amadurecer pois vou incorporando um pouco da tradição local ou algum tema que faça sentido do lugar onde vou apresentando o espectáculo e assim a bagagem vai crescendo conforme o espectáculo vai viajando.