Entrevista: Manuel Alberto Pereira de Matos, Vigário Geral da Diocese e autor do livro ‘Ave Maria, a Bendita – Uma fresta aberta ao ecumenismo’
Manuel Alberto Pereira de Matos nasceu em 1944, em Argomil, freguesia de Pomares (Pinhel), em cuja igreja paroquial foi baptizado. Ainda na infância, passou a viver na Miragaia (Pínzio), mas com frequente ligação ao lugar da naturalidade, numa relação familiar muito feliz e que influenciou saudavelmente o crescimento em todos os aspectos, incluindo as concepções de ordem humana e espiritual.Estudou nos Seminários do Fundão e da Guarda, na Universidade Clássica e na Católica (Lisboa), na Pontifícia de Salamanca (doutoramento).Considera-se “um rural nato e inveterado”. Dedica algum tempo à caça, honrando a tradição familiar. Gosta de ouvir música, ler e escrever.
A GUARDA: Terminou o ano de 2020 com a publicação de mais um livro, desta vez sobre a Ave Maria. O que é que o inspirou para esta nova publicação?
Manuel Matos: Na realidade, a publicação deste pequeno livro foi precedida de não pouca hesitação. Ele estava praticamente feito em 2019. Contudo, interrogava-me sobre a oportunidade e a utilidade de trazer a público aquilo que eu vinha experimentando como modo de rezar a Ave Maria. Não é certo que há, em todos nós, um íntimo pudor em nos expormos publicamente, no que toca à nossa espiritualidade e à nossa fé? Não há sobretudo uma recusa interior em nos sujeitarmos às previsíveis críticas, até algum sarcasmo acerca do que de novo e de útil ali poderá encontrar-se? Não obstante, foi essa questão da utilidade que mais veio a pesar na decisão de publicar as reflexões que vinha fazendo, e me iam conduzindo a uma prática orante em que eu próprio encontrava maior atenção e alegria interior. Então, por ouvir a muitas pessoas quanto sofrem espiritualmente devido às frequentes distrações na oração, especialmente na recitação da Ave Maria, tomei essa decisão, exarada na dedicatória deste livro. Queria, pois, oferecer simples sugestões que pudessem servir de algum proveito a tantos crentes com os quais partilho a alegria da fé e da oração, todos nós sujeitos às distrações que aí nos acometem, e que sinceramente desejaríamos vencer.
A GUARDA: Quais as grandes ideias desenvolvidas ao longo do livro?
Manuel Matos: Não tenho a pretensão de trazer grandes ideias. Nem sequer de que haja uma notória originalidade naquilo que é apresentado. No fundo, o propósito inspirador radica na minha devoção pessoal à Virgem Maria, que vem naturalmente da infância, como acontece com o comum dos católicos. Gostaria, porém, de honrar a Mãe do céu com uma oração mais atenta e mais digna, de algum modo condizente com a grandeza que lhe é peculiar. Venho pensando que é muito triste que nos conformemos a viver tantos anos com tão poucos progressos na vida espiritual, em concreto nessa vertente que é a oração, especialmente as orações quotidianas. Será satisfatório que cheguemos ao fim da vida sem aprendermos mais do que foram os inícios de uma prática religiosa infantil, ou mesmo juvenil, prática sem dúvida preciosa nessas idades, mas que exigiria progressos e melhoria ao longo da vida? Não será imperioso que, com os anos vividos, cheguemos a atingir maior profundidade, mais conhecimento e melhor vivência dos mistérios salvíficos, nos quais habitualmente só ao de leve tocamos? Ora, foi essa reflexão que me desafiou pessoalmente, levando-me a propô-la com certo desassombro a outras pessoas. A intuição fundamental é de natureza teológica e radica na evidência de que toda a oração cristã há de ser entendida a partir da centralidade do mistério de Cristo. É uma tarefa da teologia repensar toda a oração e, portanto, também as orações marianas, como é a Ave Maria, em perspectiva cristocêntrica.Como método de trabalho, entendo que é na Escritura sagrada que toda a investigação teológica há de encontrar a sua fundamentação. Por isso a ela recorro a cada passo, e não ouso fazer afirmações que não encontrem confirmação na palavra revelada. Tudo o resto seriam inconsistentes considerações piedosas.Depois, quis também oferecer aos leitores sugestões práticas, especialmente para contrariar a rotina, a recitação maquinal das sucessivas ave-marias. Para isso é preciso, em primeiro lugar, entender devidamente cada uma das palavras, das expressões, e de toda a sequência desta oração. Conseguida essa inteligibilidade, será em seguida mais fácil rezá-la atentamente e com fruto. É lógico que para se conseguir uma atenção permanente, por exemplo, na recitação de todo o terço, isso iria requerer um esforço demasiado grande. Mas poderá haver uma melhoria progressiva. E isso certamente agradará a Deus e a Nossa Senhora, e também nos trará alguma consolação e alegria espiritual.
A GUARDA: O livro é mesmo ‘uma fresta aberta ao ecumenismo’?
Manuel Matos: É sabido que os esforços de aproximação ecuménica, para promover a unidade entre os cristãos separados, têm encontrado diversas dificuldades, entre as quais sobressaem as questões relacionadas com a devoção dos católicos à Virgem Maria.A questão fundamental está no culto dos santos, tal como os teólogos da Reforma protestante o contrapuseram ao culto que só a Deus é devido. Ora entre os santos está, evidentemente, Maria. Nós, os católicos, desenvolvemos uma ampla mariologia (a teologia mariana), a par da hagiologia geral (o tratado da teologia relativa aos santos). A verdade, contudo, é que nalgumas práticas e manifestações religiosas e cultuais que apareceram entre os católicos tem havido excessos notórios, chocando a sensibilidade de praticantes de várias confissões protestantes. E também no culto prestado à Virgem Maria, foram aparecendo certos exageros devocionais, designadamente os que parecem aproximar-se a formas de adoração, a qual só a Deus devida.O que, neste livro, eu quis pôr em evidência é que esta oração mariana que é a Ave Maria pode ser interpretada e rezada num sentido mais cristocêntrico e realçando também o seu alcance eclesiológico. A sua dimensão cristológica sobressai ao valorizarmos a noção de que Maria é bendita justamente em virtude de ser bendito o fruto do seu ventre, Jesus. É o que eu defendo neste livro sob o conceito da causalidade da bendição, e que pode abrir a tal “fresta”, oferecendo uma perspectiva de oração que é de algum modo nova, e com potencialidades de abertura na linha do diálogo ecuménico. De modo idêntico, quis abordar um outro ponto que tem sido motivo de grande fricção entre católicos e protestantes, no que a Maria se refere, e que é a sua mediação ou o seu poder de interceção. Foi o que eu pretendi esclarecer com a explicação da súplica: “rogai por nós pecadores”. É um ponto essencial no diálogo desejável, o qual penso que pode ser favorecido pela abordagem de um outro tema teológico, e que é a relação existente entre Maria e a Igreja, formada de pecadores. Tentei, por isso, esclarecer o tópico da santidade da Mãe suplicada, contraposta à pecaminosidade dos filhos suplicantes. Paralelamente, e tendo em conta que na atualidade vem aumentando entre nós a presença dos muçulmanos, a terceira religião monoteísta, na esteira dos cristãos e dos judeus, foi meu propósito alargar as perspetivas do ecumenismo, dedicando alguns parágrafos a esse campo particular do diálogo inter-religioso. Com esse propósito, quis salientar quanto as passagens referentes a Maria no livro sagrado da religião muçulmana, o Alcorão, potenciam formas de diálogo sobre as temáticas religiosas numa sociedade eivada de materialismo e descrença, num mundo carente de valores espirituais.
A GUARDA: Dedica este livro “a todos os que se queixam de distrações na oração, mas especialmente aos que desejariam aprender a evitá-las”. O que quer exprimir com esta dedicatória?
Manuel Matos: No essencial, parti da minha pobre experiência como orante. E pensei: terei eu, teremos todos nós, de ficar resignados com as formas rotineiras de rezar? Teremos de ficar indefesos perante a constante tentação das contínuas distrações na oração? Ao rezar a Ave Maria, sobretudo no terço, com as cinquenta repetições, facilmente me acontecia chegar ao fim com a penosa verificação de quase não ter pensado no verdadeiro conteúdo que as fórmulas e as palavras encerram. E ficava insatisfeito e triste, censurando-me interiormente. E interrogava-me: não haverá maneira de rezar melhor, com mais concentração?Por isso apresento neste livro algumas sugestões para vencer a rotina, a forma maquinal de rezar, o ritualismo decorrente de rezar como que por obrigação ou compromisso rígido. Não será melhor rezar menos e com mais concentração? E talvez alguns processos simples nos ajudem a consegui-lo.
A GUARDA: Quem são os principais destinatários desta obra de mariologia?
Manuel Matos: Sabemos que qualquer obra que é lançada para o público tem todas as pessoas como potenciais destinatários. Mas é lógico que quando escrevemos sobre determinadas matérias pensamos preferencialmente nalguns tipos de leitores. E interrogamo-nos: para quem poderá ter algum interesse aquilo que estou a propor como leitura e reflexão? É claro que um livro deste género interessará mais diretamente a pessoas crentes, a gente que reza habitualmente. Pensei especialmente naquele género de pessoas que reza bastante, mesmo diariamente, mas que está insatisfeita com o seu modo de rezar, sentindo até uma certa culpa por isso. Será principalmente gente de uma fé simples, o comum do povo de Deus composto por fiéis de todas as proveniências e camadas sociais, que acorrem às nossas igrejas e que se esforçam por cumprir as suas devoções individuais ou familiares.Mas também gostaria de ajudar quem talvez reze pouco e tenha sérias dúvidas sobre as questões da oração e da fé. Não terá essa gente uma certa curiosidade intelectual, movida pelas dúvidas e pela inquietação acerca destas coisas religiosas? E o que é que nós, os homens da Igreja, lhes oferecemos?Possivelmente também haverá algumas pessoas, em número mais reduzido, interessadas nas discussões relacionadas com as questões teológicas, mormente com a teologia da oração e com a espiritualidade. Também este género de gente que merece ser considerada, com as suas exigências de pensamento mais elaborado, determinada sistematização doutrinal e rigor científico mormente no domínio exegético. Finalmente, não quereria decepcionar algum possível leitor mais versado em mariologia. A GUARDA: Com a vasta obra que tem publicado destaca-se como um grande teólogo da Diocese da Guarda. Há algum tema que ainda gostasse de aprofundar e apresentar em livro?
Manuel Matos: Considero, evidentemente, que são demasiado elogiosas essas afirmações que introduzem a questão que me é colocada, quer porque as obras que publiquei ainda não são assim tantas, quer sobretudo porque não tenho a pretensão de ser um teólogo verdadeiramente digno desse nome. Entretanto, todos nós, no exercício do ministério pastoral, temos consciência de que é urgente o ensino destas questões. No que me diz respeito, não foi em vão que exerci a função de professor de teologia durante bastantes anos, actividade que exercia com verdadeira paixão. Agora, como fiquei sem alunos e sem aulas, penso que posso continuar a ensinar modestamente desta forma, esporádica e menos comprometida, é certo, mas que também pode ser válida e de algum proveito para outros.Quanto a temas sobre os quais gostaria de continuar a refletir mais aprofundadamente, são vários os que em certa medida me cativam e me desafiam. Alguns já há anos que os comecei a trabalhar, mas foram ficando em “stand by” no computador, talvez já meio engrolados. Além do mais, sinto muito a falta de uma boa biblioteca onde pudesse fazer a conveniente investigação, com bibliografia especializada e actualizada. Logo veremos.
A GUARDA: Como Vigário Geral da Diocese da Guarda qual o grande desejo que alimenta para este ano de 2021 que estamos a iniciar?
Manuel Matos: Mais do que como Vigário Geral, gostaria de falar simplesmente como um de entre muitos outros corresponsáveis, neste Presbitério da Guarda. Na presente circunstância, limitar-me-ei a tecer umas breves considerações, entre tantas que reclamam atenção urgente. E faço-o sob a forma de interrogações. Sendo elas concernentes à situação eclesial em geral, têm uma natural relação com a nossa realidade eclesiástica propriamente dita. Na verdade, os eclesiásticos (bispos, presbíteros e diáconos) formamos um mundo específico, e ao mesmo tempo um tanto raro, seguramente com as suas reais virtualidades, mas também com muitas complexidades. Uma realidade simultaneamente aberta e fechada. Começando por ser vocacionalmente aberta, propende a tornar-se existencialmente fechada.Ao pensar que, neste ano de 2021, nos é pedido que nos empenhemos numa “cultura do cuidado como percurso para a paz”, confesso que experimento uma certa perplexidade acerca das incidências que este lema, de cunho papal, deverá ter no aludido mundo eclesiástico. Interrogo-me: – O que nos é pedido, em termos do “cuidar de”? – O que nos propomos fazer durante este ano (que vai passar depressa), em relação aos que connosco partilham o ministério ordenado? Se este “cuidar de” é proposto como “percurso para a paz”, irá ele ter repercussão prática, na autêntica paz entre nós, por exemplo, em vencer quezílias internas? Além disso, como vamos, os sacerdotes, cuidar não só uns dos outros, mas cuidar dos diáconos permanentes? E uma interrogação mais aguda: como vamos, especialmente, cuidar as vocações ao ministério ordenado, a par dos diversos ministérios e serviços laicais? E também: como vamos efectivamente cuidar dos leigos, da sua formação nos vários campos? É bem visível que tantas interrogações são fonte de não pequena inquietação. Daí que, perante a nossa fragilidade e as nossas limitações (agravadas pela pandemia), tenhamos de confiar mais em Deus e na oração, com vista a sermos mais eficientes colaboradores na obra que essencialmente é d’Ele, mas acidentalmente é também responsabilidade nossa, e por ela teremos de responder.