Foram os meios jornalísticos que em tempos informaram.
— Não, você é que está aí! — disse o treinador Jorge Jesus à procuradora, no âmbito do processo Football Leaks, a que fora arrolado como testemunha.— É senhora procuradora — corrigiu a juíza.Quem leu o relato dos diálogos travados na Cova da Iria entre Nossa Senhora e os três pequenos pastores, poderá lembrar as primeiras perguntas que Lúcia dirige à Senhora, logo na aparição de 13 de Maio: «Donde é vossemecê?», «E que é que vossemecê me quer?» Lúcia, a mais crescida das crianças, sabia bem como se dirigir a uma senhora. Como aprendera em família e na aldeia, «Vossemecê» foi a palavra escolhida.Aconteceu numa loja comercial da cidade da Guarda, daquelas ainda bem tradicionais, já raras, onde se vendem produtos igualmente tradicionais de utilidade caseira. Encontrava-me eu a proceder ao pagamento da minha aquisição. Uma coisa simples, certamente. Foi quando atrás de mim ouvi uma voz feminina. Respondendo, certamente, a uma qualquer pergunta, uma senhora retorquiu: – Vomecê é que sabe. Levado por um impulso que não consegui dominar, olhei para trás, discretamente. Eram duas senhoras, já de boa idade, ocupadas a observar os produtos em exposição na loja. Aquele «vomecê» soube-me a música. Música da minha adolescência e juventude em que se estudava a etimologia, transformação e geração das palavras e a sintaxe gramatical era elaborada com terminologia acessível e sem aqueles palavrões linguísticos e os modismos traiçoeiros que hoje fervilham por aí nas nossas escolas. Música, também, da infância na minha aldeia encantada – a aldeia em que se nasce é sempre de encanto -, com as casas cheias de gente, onde todos se conheciam e todos se saudavam quando se cruzavam nas ruas ou se encontravam nas veredas a caminho dos campos. Eram encontros de vida em que, em forma de saudação fraterna, lá vinha o «Vomecê como está?» Foi numa rua da aldeia que um dia, acabado de chegar para férias, ao cruzar-me com uma vizinha, fui saudado com um «Vomecê como está?» Não sei o porquê deste tratamento. Talvez até tenha surgido naturalmente e, confesso, fiquei de momento um tanto confundido e tratei a simpática vizinha, como fora ensinado, por «Senhora», acrescentando, como habitualmente, o seu nome próprio. Mas verdade é que nesse dia eu me senti um pouco mais gente. Aos olhos da simpática vizinha, tinha mudado de estatuto. Deixara de ser uma criança ou um adolescente e entrara no mundo dos crescidos. Era a Senhora Ana, boa e simples senhora, cujo filho mais novo, o Joaquim, tem exactamente a minha idade. Deus a tenha no reino eterno dos justos.Não posso imaginar há quanto tempo não ouvia o termo «vomecê». É verdade que com maior frequência se utilizavam, na aldeia, outras formas menos contractas como a «vosmecê» e, mais comummente, o «vossemecê» utilizado pela vidente Lúcia. Mesmo estas formas de tratamento caíram em desuso e não sei até que ponto elas ainda são utilizadas nos nossos povoados. Creio que a desertificação da região, o peso da comunicação social e a maior escolarização da juventude foram vencendo a castiça linguagem popular em favor da erudita ou de outra, sem nome, plasmada pela tecnologia digital. Por isso tanto me agradou aquele «vomecê», muito acentuado, pronunciado com a natural simplicidade de uma senhora humilde e de idade avançada.Tudo vai mudando e, como tudo o que muda, as formas de tratamento foram mudando também. Foi sempre assim e assim continuará a ser. Mas estou em crer que com o desaparecimento destas formas andará por aí algum empobrecimento, tanto linguístico como social. Especulação, poder-se-á dizer. Seja. Mas tomemos a palavra no sentido intelectual ou espiritual e deixemos para outros a especulação material que abunda por aí, seja ela financeira, imobiliária e quejandas. Especulemos nós para sãmente melhor nos conhecermos. «Vossemecê», «vosmecê», «vomecê», três termos que foram perdendo uso em benefício de «você», com algum uso ainda, termo final da mesma família linguística com origem primeira em «vossa mercê». Mas quantos dos nossos escolares actuais o saberão? E saberão de que forma morfológica se trata, mesmo que a encontrem, exemplarmente, na frase que eu ouvi: «Vomecê é que sabe»? E, se lembrarmos outras idênticas, como «Vossa excelência», será que identificarão «Vossa mercê» como um pronome pessoal dos dois géneros, masculino e feminino, tal como o são as outras formas morfológicas, «vossemecê», «vosmecê», «vomecê» e «você»? Tudo formas de «Vossa mercê» contraídas que se foram constituindo com o uso natural dos falantes, ao contrário do que sucede com intervenções arbitrárias como está a acontecer com o tristemente célebre acordo ortográfico [(des)AO 90]. A palavra «mercê» também foi caindo em desuso e poucos saberão – oxalá me engane – que «mercê» significa «graça», «benefício», «bondade», «benevolência» e «favor».Na última forma, em «você», tudo caiu, excepto a primeira e última sílaba da expressão «Vossa mercê»! Mas em «você» lá estará o peso simbólico desta forma no tratamento de deferência, variável conforme a idade e o estatuto social dos interlocutores, podendo mesmo acontecer que seja utilizada como modo de desconsideração pessoal – de superior para inferior, por exemplo – e até ser utilizada como forma de insulto. Haja atenção às regiões, às entoações, aos gestos e às circunstâncias que envolvem o seu uso em cada momento. Passará por aqui a cena em que se encontrou Jorge Jesus, ele que chegara há pouco tempo do Brasil, onde o «você» é ordinariamente utilizado.«Vomecê é que sabe», dizia aquela senhora. Não sei que estudos ela terá feito, nem se alguma vez estudara a subtileza gramatical daquelas formas: pronomes pessoais da segunda pessoa que obrigam o sujeito falante à conjugação do verbo na terceira. Mas que a circunstância denotava clara expressão de respeito, consideração e estima pessoal, isso pareceu-me evidente.Chegado aqui, sinto-me tentado a enveredar pelos labirínticos caminhos da comunicação e formas dos humanos linguajares no tratamento social. Não vou por aí – os especialistas que o façam -, mas imagino que aquelas formas pronominais poderão constituir-se como uma espécie de fotografia da sociedade que somos e que vamos formando com os nossos comportamentos e linguagens. Não vou por aí, repito. Deixo a questão também à graça e mercê do leitor. Também Vomecê, estimado leitor, é que sabe! Escancarando as portas à subtileza do seu espírito, mesmo, ou sobretudo, neste tempo de pandemia em que nos encontramos, dê largas à Vossa mercê e seja feliz com a Graça e a Mercê de Todos os Santos.Guarda, 30 de Outubro de 2020