O TEMPO É SUPERIOR AO ESPAÇO
O título poderá ser surpreendente e estranho para muitos. Para outros, mais familiarizados com a filosofia e a ciência, poderá ser sem rigor e equívoco, se não mesmo insustentável. Porém, aquela afirmação tem sido recorrente no discurso do Papa Francisco onde aparece, não como princípio filosófico ou científico, mas como princípio de vida pessoal e colectiva. Encontramo-la também logo no início da recente Exortação Apostólica Amoris Laetitia que vem culminar, como é sabido, um caminho sinodal da Igreja Católica ao longo de mais de dois anos.
Com natural curiosidade, humana e cristã, comecei a ler a Exortação constituída de 325 pontos. Mas não fui ainda além do exórdio. No ponto 7 encontrei as seguintes palavras: não aconselho uma leitura geral apressada. Poderá ser de maior proveito, …, aprofundar pacientemente uma parte de cada vez ou procurar nela aquilo de que precisam [pessoas, famílias ou agentes pastorais] em circunstância concreta. Segui o conselho do Papa e regressei ao início. Naquele momento a minha circunstância concreta era encontrar chaves de interpretação da longa carta papal ou, se se preferir, entrar no espírito que a percorre. Para o efeito, haveria que travar uma leitura geral apressada, e aprofundar pacientemente a introdução.
Li e reli os sete pontos iniciais degustando as palavras e deixando-me embalar num mundo de pensamentos e afeições que as ideias me iam despertando, a começar pela primeira afirmação: A Alegria do Amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja. Cada palavra ficou a martelar no meu espírito e a frase já me parecia dizer que a Exortação mais do que sobre a Família, um universal abstracto, incidiria sobre as Famílias, o universal concreto, com o seu amor, a sua vida, a sua situação actual, os seus problemas, constituindo-se como estímulo e ajuda, proposta e proveito, e ainda como encorajamento na construção de famílias sólidas e fecundas.
Atraído pela coincidência de opostos, quase espontaneamente saltei do princípio para o final da Exortação e deparei-me este singelo apelo: Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida. (p. 325).
Regressando ao início da Exortação, avancemos, pois, recordando que o tempo é superior ao espaço como nos sugere a Exortação logo no ponto 3. Recorrente no pensamento do Papa Francisco, aparece já na Encíclica Lumen Fidei (Luz da Fé). Aí se diz já a terminar: O tempo é sempre superior ao espaço: o espaço cristaliza os processos, ao passo que o tempo projecta para o futuro e impele a caminhar na esperança. (57). Mas é na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (Alegria do Evangelho) onde o sentido da frase aparece com maior desenvolvimento (p. 222 e 223). Aqui é apresentado como um dos quatro princípios que deverão estar presentes na construção do bem comum e na paz social. É, pois, um princípio de leitura da existência humana no mundo.
Princípio teórico de leitura da existência do ser humano, ele é também um princípio prático da vida concreta. Trata-se de se assumir a tensão bipolar que existe entre a plenitude e o limite. O tempo refere-se à expressão da plenitude do horizonte que se abre diante de nós, sendo que cada momento é a expressão do limite que se vive em cada espaço circunscrito. Vivendo esta tensão entre a conjuntura do momento concreto e a luz do tempo, importa dar prioridade ao tempo, ocupando-se mais em iniciar processos do que em possuir espaços.
O princípio permite trabalhar a longo prazo sem as obsessões de resultados imediatos e, diz-nos o Papa, ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. E o Papa Francisco aponta mesmo que um dos pecados que se notam na vida hodierna consiste em privilegiar os espaços de poder de ganhos fáceis, rápidos e efémeros, em vez do tempo dos processos construtores de plenitude. Daí o estado depressivo de que frequentemente se fala no mundo ocidental. Importa dar prioridade ao tempo que ordena, ilumina e transforma os espaços em elos de uma cadeia constante.
Comunidades de seres humanos, também as famílias vivem esta tensão entre a plenitude e o limite. Também elas vivem em espaços concretos com tradições e desafios locais. Também aí, sem obsessões de resultados imediatos, cada princípio geral, para ser observado e aplicado, precisa de ser inculturado (p.3). Sempre na Alegria do Amor e com Sinais de Misericórdia, lembremos o final da Exortação: Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida.
24 de Abril de 2016