Vivemos em múltiplos universos. Ou, se o leitor preferir, são muitos os mundos em que nos movimentamos. Uns serão mundos macro e outros micromundos. Mas mundos. Uns que se impõem a nós como montanhas que nos desafiam a subir, e outros que se nos oferecem como realidades a transformar. Ou, simplesmente, a saborear. Porque também há mundos de pura beleza a fruir.
É um dos pensamentos mais conhecidos e divulgados da filosofia platónica: a existência de dois mundos – o mundo sensível e o mundo inteligível ou das Ideias. O primeiro, o mundo sensível, é este mundo mutável que apreendemos com os nossos sentidos. O segundo, o mundo inteligível, é o mundo das Ideias Eternas, como as ideias matemáticas e as ideias morais, só apreendido pela reflexão levada a efeito pelas faculdades superiores da alma. Como é sabido, Platão, para explicar o seu pensamento, socorre-se de imagens plásticas como a conhecida e muito sugestiva alegoria da caverna.
O filósofo Karl Popper [1902-1994] acrescenta um mundo aos dois mundos de Platão e fala de três mundos: mundo físico ou espácio-temporal dos objectos físicos e estados materiais [mundo sensível platónico], mundo dos conteúdos objectivos do pensamento como os da ciência e as suas leis [que poderá ser aparentado com o mundo inteligível de Platão] e o mundo mental dos estados de consciência [de que Platão não fala, mas que implicitamente lá se encontra no pensamento do filósofo grego], como as emoções e os sentimentos e até o conhecimento subjectivamente considerado.
Não, não irei falar aqui dos mundos destes filósofos e, muito menos, do que eles pretendem desenvolver com as suas ideias. Mas, situando-nos mais terra-a-terra, poderemos nós aumentar o número de mundos se aproveitarmos a riqueza dos mundos referidos por estes filósofos. O mundo físico, sensível, é uma rede de outros mundos, tal como o mundo mental dos nossos estados de consciência e até o mundo das leis científicas ou do conhecimento objectivo. Temos bem disso a experiência. O próprio Platão encontra pelo menos dois submundos no que ele chama «mundo inteligível»: o mundo das «ideias matemáticas» e o mundo das «ideias morais», como encontra dois submundos no mundo sensível: o mundo dos objectos reais e o mundo das sombras e reflexos.
Não é destes mundos e submundos em que pretendo aqui entrar, mas de outros mundos recentemente descobertos que têm andado a bailar no mundo do meu pensamento, no mundo das minhas emoções, no mundo das minhas inquietações e no mundo das minhas esperanças. Mundos recentes que desafiam a reflexão e podem proporcionar a expansão do mundo das nossas especulações. Novos mundos, novos desafios. Um provém da ciência, da física e astrofísica, e outro da tecnologia que temos nas mãos ou do que fazemos com ela. Chamemos ao primeiro mundo sideral, o nosso, de cada um de nós, vivos ou mortos e chamemos ao segundo mundo virtual, o nosso, de cada um de nós, mundo de quantos utilizam ou utilizaram redes de comunicação.
Embora já desde há muito me tenham surgido ao espírito, estes dois universos assumiram formas mais vivas no pensamento com leituras de obras de divulgação científica recentemente aparecidas no mundo livreiro. Porque também há o mundo dos livros, o mundo que expressa outros mundos, seja da ciência, seja das artes, seja da política, da religião, da história ou da ética e moral. E esse mundo dos livros é portador de novos mundos. Mundo do desassossego, também. Encontramo-nos, tantas vezes, tão tranquilos quando uma leitura, de um livro, de uma frase ou até de uma simples palavra, nos acorda da nossa dormência, prisioneiros da caverna platónica, e nos transporta para horizontes de outros mundos.
Vamos ao que acima chamei de mundo sideral socorrendo-nos de palavras de Colin Stuart [n. 1982] que encontrei recentemente no seu livro de divulgação científica intitulado «Tempo – 10 coisas que deve saber». E eu fiquei a saber. Assim escreve ele «A nossa história ondula através do Universo, a uma velocidade vertiginosa. Imagens de Hitler, Marie Curie, Gengis Khan, dos nossos tetravós e de nós quando éramos crianças estão a inundar o espaço, levando a nossa história a quem quer que tenha ferramentas para a sintonizar.» E um pouco depois, para sossego de quem lê, escreve Colin Stuart: «Assim, a nossa história “está” algures entre as estrelas, mas é improvável que alguém a veja com algum detalhe. Podemos continuar a contemplar o céu noturno – e o passado – sem recear que um mirone alienígena esteja a observar todos os nossos passos à distância.»
Somos astronautas e não haverá mirones no universo a observar as nossas vidas, mas não se discordará que estamos perante realidades desconcertantes. Os textos citados são do terceiro capítulo a que, curiosamente, deu o seguinte título: «Os telescópios são máquinas do tempo». Não entraremos nas questões de técnica científica porque, ignorantes que somos, erraríamos, certamente, na expressão utilizada. Mas sempre diremos que tudo se resume a ‘jogos’ de luz que viaja no Universo à velocidade de quase 300 mil quilómetros por segundo. Será essa a velocidade estonteante com que viajamos nesse inimaginável Universo de estrelas, numa espécie de imortalidade sideral.
Deixemos, extasiados de admiração, este universo estrelar porque, com as redes sociais que diariamente utilizamos, vamos entrando noutro universo e lá vamos permanecendo. “Facebook”, “Instagram”, “Whats App” e quejandos são as portas de entrada para este universo virtual de onde dificilmente há saída. De vez em quando somos informados – seremos? – dos perigos que corremos com a utilização destas portas e ouvimos falar na necessidade de legislação proporcionada às realidades emergentes com a expansão e utilização das novas tecnologias. E, por vezes, numa qualquer reportagem, parece podermos concluir que fomos apanhados numa rede virtual de mirones de onde não sabemos como sair. Andaremos vagabundeando neste universo virtual em que, deslumbrados com as possibilidades oferecidas, entrámos e construímos uma nova habitação cujos meandros ignoramos.
Os telemóveis são a porta de entrada para um universo virtual de que, se poderemos ser conscientes construtores activos, também, fácil e alegremente, poderemos ser manipulados por mãos invisíveis de estranhos poderes, deixando lá gravadas para sempre as pegadas dos nossos passos.
Recentemente foi lançado o debate por esse mundo humano, designadamente na nossa velha Europa. Portugal não foge à regra. Importa, diz-se com razão, questionar a utilização de telemóveis pelos alunos nas escolas porque, de hipotéticos instrumentos de trabalho, facilmente poderão eles transformar-se em instrumento de dependência e alienação humana, sobretudo no caso de crianças, adolescentes e jovens por se encontrarem em fase de desenvolvimento. E as medidas começaram a surgir. A proibição é a palavra de que se fala. Não sei se será essa a melhor palavra para definir a situação porque aqui, como sempre, importará lembrar o que já o velho Cícero [106 a.C. – 43 a. C.] escreveu: «Somos escravos da lei para podermos ser livres.»
De todos os mundos em que nos movimentamos, o virtual será o mais recente e aquele que mais nos deslumbrará de momento. Mas será também aquele que mais facilmente nos poderá cegar. Daí os desafios que ele coloca aos seres humanos, amantes da liberdade, aos pais, primeiros responsáveis pela educação dos filhos, e aos estados ao qual compete zelar pelo bem-estar dos cidadãos.
Guarda, 11 de Setembro de 2024
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com