Há poucos dias ainda, entrando numa livraria, logo me chamou a atenção um livro acabado de chegar ao mundo livreiro português.
Editado pela Guerra e Paz, apresentava-se com o seguinte título: E se recomeçássemos pela Cultura? Em defesa da soberania europeia. O seu autor é Jean-Noël Tronc. Estávamos em Maio. Para além do assunto, anunciado em forma interrogativa num fundo de capa azul, as eleições europeias seriam também outro motivo circunstancial para alimentar o interesse pela obra. Ali, à mistura com referências processuais do percurso europeu, estavam sumariados problemas da cultura na Europa.
Vi no ponto de interrogação de tal título o desenho de uma clave de sol e aquelas letras pareciam anunciar uma canção raramente ouvida. Lá de mais longe, já se ouvia a ressonância de um eco num eterno desafio: E se recomeçássemos pela Cultura? Agarrei a obra e folheei-a como quem dedilha as cordas de uma guitarra, enquanto ouvia Robert Schuman, um dos pais fundadores da Comunidade Europeia, a ditar-me a letra da canção: «Antes de ser uma aliança militar ou uma entidade económica, a Europa deve ser uma comunidade cultural no sentido mais nobre do termo.»
E foi ao som dolente das notas da guitarra que, logo na Introdução, pude ler: «o que liquida a Europa em lume brando é a sua ausência de alma e a negação da sua identidade.» E continuava: «O que podia salvá-la, reabilitando aos olhos dos povos que a constituem, seria antes de mais a afirmação da sua identidade e o reconhecimento da sua força cultural, produtos de uma história prodigiosa e de uma criatividade sem limites.» Para logo anunciar «A cultura como o melhor remédio para a crise europeia». Seria esta a tese do livro.
Depois de percorrer aspectos vários da política europeia da cultura – economia da cultura, União Europeia e indústrias culturais, cultura e digital – o livro apresenta «Propostas para a Europa», cuja implementação, segundo o Autor, não seria demasiado complicada.
Devo dizer que apreciei sumamente o livro e as propostas finais, mas terminei a leitura um pouco desapontado. Pareceu-me faltar uma raiz fundamental. Fui a uma estante e puxei por outro livro que há dois anos havia lido com entusiástico encanto.
Era uma vez uma bela princesa. Chamava-se Europa e, regressada de um prolongado exílio, apresenta-se num hotel. A recepcionista solicita-lhe, naturalmente, o passaporte. Mas a amável princesa tem nome, mas não tem passaporte e afirma não pertencer a nenhuma nacionalidade específica. Não possui, portanto, qualquer documento de identificação.
O hotel não se encontrava lotado e a recepcionista sabia do seu ofício. Enquanto pesquisava um quarto no computador, ia dizendo muito compreensiva:
– Não é habitual uma situação destas, mas excepcionalmente poderei providenciar-lhe um quarto, com pequeno-almoço incluído, por…
A frase ficou incompleta porque Europa logo se adiantou a confessar que também não possuía dinheiro. O rosto simpático da recepcionista esmorece um pouco e, dando um ar de alguma impaciência, pergunta por que razão se encontrava ali então.
– Isso já a Senhora sabe, porque já lhe disse. Encontro-me aqui à procura de um quarto. – Respondeu Europa, sorrindo.
– Sem passaporte e sem dinheiro para pagar? De onde vem, afinal, a Senhora?
– Nasci há muito tempo na Fenícia, que hoje se chama Líbano. Raptada por Zeus aportei a Creta, onde fui mãe zelosa. Depois fui a inspiração espiritual de uma civilização de grande riqueza cultural. Por isso tenho andado por todo o mundo.
A recepcionista, cada vez mais confusa, interrompe a Europa para dizer:
– Estou a compreender. Vejo que é uma refugiada. Bem gostaria de a poder ajudar mas, como poderá ver, isto é um hotel e não um campo de refugiados.
– Minha estimada senhora, está enganada. Não sou refugiada. Sou antes uma exilada que regressa à terra de onde nunca deveria ter saído. Não possuo dinheiro, é verdade, e nunca imaginei que por aqui fosse tão necessário. Mas tenho outra coisa bem mais preciosa que o dinheiro e que parece fazer enorme falta por estas paragens.
A recepcionista, intrigada e de todo confundida e já um tanto nervosa, preparava-se para perguntar se poderia saber que coisa tão preciosa seria essa que faria tanta falta, quando Europa, muito calmamente, se lhe adiantou dizendo:
– Não possuo passaporte nem dinheiro, mas tenho alma. – E desapareceu perante a estupefacção da recepcionista.
A história foi imaginada por Rob Riemen, ensaísta e filósofo holandês, para abrir o pequeno, mas precioso, livro O Regresso da Princesa Europa: As suas Lágrimas, os seus feitos e os seus Sonhos, editado pela Bizâncio em 2016. Foi este o pequeno livro que retirei da estante para o voltar a ler, reler e ler novamente. Deliciosa leitura. Se a Europa sofre da «ausência de alma» e a alma da Europa é a cultura, o livro de Rob Riemen lembra-nos o húmus que a deverá alicerçar e que dá vida a toda a árvore. «Por isso, a essência da Europa não é a política, ou a economia, ou a tecnologia, não, é a cultura. Nada mais.» E lembrando as «sábias palavras» da afirmação de Cícero «Cultura animi, filosofia est» – o cultivo da alma, é isso a filosofia -, assim podemos ler no livro: «Em prol desse cultivar da alma, em prol da busca contínua desses valores espirituais e do esforço de os tornar nossos, em prol de todas as coisas, qualquer filosofia digna desse nome é sempre metafísica.» É isso: não basta falar de políticas de cultura; importa redescobrir a metafísica na cultura europeia, a filosofia «digna desse nome».
Certeiramente, e já a terminar, faz-se um diagnóstico: «Ao negar os alicerces espirituais, a alma da Europa, e ao ignorar a cultura, a filosofia e a arte com uma arrogância sem limites a favor da economia, da tecnologia e dos interesses nacionais, ao cultivar a burocracia e a diplomacia que só conseguem pensar e agir de acordo com os interesses económicos e valores políticos – e mesmo estes só em grau ínfimo – permitimos que a União fosse regida por uma mentira que nos faz esquecer a verdadeira grandeza da humanidade.» Redescobrindo a metafísica da cultura, importa lutar pelo «renascer da nobreza de espírito».
Recomeçar pela cultura, sim. Porém O Regresso da Princesa Europa só será possível quando a Europa fizer emergir a sua alma e a alimentar com os valores espirituais. Mas isso é filosofia e, particularmente, é metafísica do ser, do bem, do belo e do verdadeiro. Se isso faltar, como tem vindo a acontecer, a Europa poderá ser uma mentira, como mentira poderão ser os países da União, como mentira serão mesmo os seus cidadãos. Porque então continuará exilada a bela e verdadeira nobreza do espírito humano, a grandeza da humanidade.
Uma princesa fenícia está a bater-nos à porta. À porta de todos. Saberemos nós ouvir os seus toques delicados? Atenção: ela não tem passaporte nem dinheiro. O seu poder consiste simplesmente em estar, sempre, a bater-nos à porta, a oferecer-se para se fazer lanterna de luz para os nossos caminhos.
Guarda, 13 de Junho de 2019, dia de Santo António