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Uma escultura à espera de acontecer

Já lá se encontrava havia bastante tempo.

Mas um dia, no início de Setembro, dei pela sua falta. Havia desaparecido. Sempre que por ali passava os meus olhos caíam sistematicamente naquele cartaz à entrada do Paço da Cultura, ali bem no centro da cidade da Guarda, a anunciar uma exposição de escultura do artista Volker Schnüttgen intitulada: «Uma árvore é uma Escultura à espera de acontecer». Independentemente da valia das esculturas expostas, que apreciei, o título com que era apresentada a mostra daquele escultor alemão pareceu-me uma obra de arte, daquelas que, num relâmpago, nos fazem voar para especulações de transcendente relevância. Um dia o cartaz desapareceu, mas ficou-me na memória como se de um museu vivo a céu aberto se tratasse. No vasto museu do mundo e da vida onde cada árvore – e nós somos a árvore – é uma «Escultura à espera de acontecer». Não sei quem terá mais razão. Se Walter Benjamin a dizer que os museus são «espaços que suscitam sonhos», se André Malraux a lembrar-nos que os museus são locais que «proporcionam a mais elevada ideia do homem». Eu dei por mim a sonhar com «a mais elevada ideia do homem» e a pensar na raiz da árvore que espera ser escultura.Embebecidos com a actualidade das realidades virtuais que nos transformam em seres digitais, vamo-nos esquecendo da realidade. Vamo-nos esquecendo mesmo da palavra “virtude” ou vamo-la lançando para o cesto de velharias bafientas. Esquecemos mesmo o significado da palavra. Humanos digitais que somos nesta contemporaneidade electrónica, vamos sabendo do poder da realidade virtual, da nossa presença virtual no mundo do espaço virtual, mas ignoramos, talvez, que a palavra “virtude” significa isso mesmo: poder, potência, força. Ou seja, uma qualidade ou aptidão que potencia novas realidades. Como uma árvore que, pela sua virtude própria, desperta a virtude criadora do artista e a obra acontece: «Uma árvore é uma Escultura à espera de acontecer».Ao contrário dos outros animais o homem nasce desarmado de uma base sólida de instintos adequados à satisfação das suas necessidades. Cedo ou tarde, às vezes bem tarde, poderá acordar a importância da filosofia das virtudes humanas.Cada um de nós será uma árvore à espera de acontecer a escultura, uma árvore com uma virtude fundante de outras virtudes: a virtude de se poder apropriar de possibilidades, para usarmos a expressão de filósofo espanhol Xavier Zubiri. As virtudes e os vícios são os modos de apropriação. As virtudes constituídas em nós são configuração prática da virtude constituinte humana e o seu desenvolvimento é a formação daquilo por que tanto se insistia outrora na educação dos adolescentes e jovens e que hoje raramente se ouve falar: o carácter e a nobreza de espírito. As virtudes constituídas com o exercício da inteligência racional na nossa vida, se já são uma obra escultórica do espírito, são disposições habituais e firmes para fazermos o bem e modelar a Escultura que no jardim da vida espera acontecer. Ou, de qualquer modo, vai acontecendo. Esquecidas, ignoradas ou vilipendiadas, as virtudes estarão sempre no centro da ética, seja ela pensada como “dever” à maneira kantiana ou com outras configurações de que está cheia a história do pensamento humano.Abstraindo da diferença entre as duas grafias com que ela aparece, a palavra grega «êthos», de onde provém a nossa palavra «ética», possui dois sentidos fundamentais. Significa «carácter» enquanto modo de ser que se vai adquirindo ao longo da existência. Mas o vocábulo grego «êthos» significa também «morada», «residência», «guarida», ou seja, o lugar onde se mora ou alguém se abriga. Começou a usar-se primeiramente na poesia reportando-se aos lugares onde se criam e se guardam os animais. Depois passou a aplicar-se ao espaço ocupado pelos povos, e, finalmente, aplicou-se ao homem. Mas então, mais do que um espaço físico, um lugar exterior, passou a designar o lugar espiritual que o homem, por constituição intrínseca, é chamado a ocupar, como modo ou forma própria de vida. Neste sentido o «êthos» será o solo firme, a raiz de onde brotam os actos humanos, o fundamento original da acção, a «morada» do seu agir, a virtude constituinte do homem lançado no cuidado da existência.Mais próximo de nós o filósofo Heidegger é talvez aquele que mais aproveitou este sentido original daquela palavra grega para afirmar que a ética é o pensar que afirma a morada do homem no ser, identificando assim a ética com uma espécie de ontologia, ou estudo do ser. Poética e metaforicamente, escreve que o «Homem é o pastor do ser».Em tempos de confinamento pandémico entraram na linguagem corrente as expressões “ir para casa” e “ficar em casa”. Era a casa física, geograficamente situada. Mas a casa do ser humano é também outra coisa. É também casa aquela em que nos abrigamos como pastores, que somos, do nosso ser existente. “Ir para casa”, não só para nos resguardarmos de um vírus traiçoeiro em tempos pandémicos, mas também para regressarmos à nossa morada original ao «êthos» primigénio onde nos deparamos lançados para a liberdade. Estou a vê-la, precisamente, nesse lugar metafísico da ontologia do humano de onde a inteligência emerge iluminada pela luz do bem que importa fazer. É a ética fundamental, a ética base das “outras” éticas. É aí que habita o Homem enquanto ser do mundo. Se o Homem é «pastor do ser», cada homem é também pastor de si mesmo. Pastor e Escultor. Todas as casas físicas falam, portanto, de outra casa que está para além delas, de outra morada, misteriosamente sempre presente, mesmo quando esquecida, calada, ou tragicamente deturpada. Sempre o Homem habita outra casa como abrigo e oficina. Abrigo de Pastor e oficina de Escultor. O texto podia terminar aqui. Mas, conduzido ainda pela acção “virtuosa” do agir do escultor, evoco a clássica filosofia das virtudes cardeais sem as quais não creio que possamos esculpir bem a vida, nem o escultor criar a obra artística: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança. Precisa o escultor de Prudência no discernimento para vislumbrar a escultura na matéria bruta; da Justiça para ajustar cada pancada do cinzel ao ponto exacto onde pretende retirar limalhas sem destruir o essencial; de Fortaleza para superar as dificuldades do trabalho e vencer o desânimo; da Temperança para boa gestão da força das mãos com que maneja o maço e o cinzel.Chama-se «Êthos» o Abrigo de Pastor e a Oficina de Escultor. Guarda, 14 de Setembro de 2020

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