Naquele dia de Dezembro, o pequeno Gil subiu ao sobrado da casa. Finalmente e furtivamente.
A casa dos pais era pequena ou, para maior exactidão, era uma casa mediana de entre todas as casas da pequena aldeia perdida nas proximidades da Estrela. A cozinha, pequena e iluminada à noite por uma candeia feita de latão alimentada a petróleo comprado na mercearia da terra, era o centro da vida familiar. Sobretudo no Inverno, quando a noite nascia logo à tardinha dos dias e o frio enregelava os ossos. Era então que a lareira, alimentada por cavacos de carvalho ou por troncos de giestas, ajudava a iluminar aquele espaço escuro, mas, sobremaneira, inspirava o espírito de todos, sobretudo dos mais pequenos sempre atentos à descoberta dos mundos e dos tempos a viver.
O Gil era o mais novo dos quatro irmãos. Pequeno ainda, e sujeito aos perigos da descoberta do mundo, ao contrário do que acontecia com os irmãos mais velhos, era-lhe vedado subir por aquela tosca escada, feita de troços de madeira pregados a duas tábuas que se encontrava no átrio de entrada da casa. Dava acesso ao sobrado para onde eram lançadas velharias sem valor. Visto cá de baixo, da pequenez do Gil, de lá provinha uma escuridão que contrastava com a luz entrada pela pequena janela que dava para uma rua.
Rua? Nem rua seria. Era um corredor de terra batida por onde passava todos os dias o pastor Jacinto com as ovelhas, coadjuvado por um cão da Serra da Estrela. Chamava-se Piloto, este cão felpudo. Era um senhor cão, aquele Piloto, capaz de impor respeito a qualquer intruso. Até se dizia na terra que não se sabia bem qual conduzia melhor o rebanho, se o pastor, assobiando ao vento a chamar os animais, se o Piloto sempre atento aos movimentos e sons da redondeza.
E quando, tilintando, o rebanho passava, lá estava o Gil, de nariz encostado ao vidro da janelinha, a ver passar o rebanho conduzido pelo assobio intermitente do pastor e do olhar atento do Piloto. Levantava-se, então, em dias de secura, uma nuvem de pó que toldava a visão encantada do pequeno Gil.
O sobrado da casa era um lugar de mistério insondável para aquele pequenino Gil, sobretudo quando algum dos irmãos subia até lá para espreitar aquele espaço inexplorado e descia rapidamente dizendo que era um lugar escuro, que metia medo, que ali não entrava luz alguma e que até poderia haver lá, escondido e traiçoeiro, algum minúsculo animalejo de mal fazer.
Aquele era um dia de Primavera, apesar de Dezembro. O céu estava azul, daquele azul mais celeste do que todos os azuis. Nem o vento se atrevia a mostrar-se e o Sol, já no Poente, aquecia o ar daquele dia que de Inverno nada parecia ter. O Gil, como noutros dias, lá estava com o nariz esborrachado na vidraça da pequena janela à espera dos irmãos que brevemente chegariam da escola, enquanto a mãe preparava a massa para os coscoréis do Natal e a refeição da noite.
Como sucedia noutras ocasiões, também naquele dia o pastor Jacinto apareceu primeiro que os irmãos. O Gil, entusiasmado com a beleza daquela tarde, o tilintar do rebanho e o assobio do pastor, abriu a janela com esforço redobrado para ouvir melhor a música pastoril daquela tardinha. Foi então que uma borboleta branca, branquinha de todo, de todo mesmo branca, branquinha, se atravessa no seu olhar. Pousou num degrau da tosca escada, depois outro, ainda outro e outro ainda, e a borboleta branca, branca, branquinha, desapareceu no escuro do sobrado.
Por um momento sem tempo, tolheu-se o pensamento ao Gil. Depois abandona a janela, espreita a cozinha onde a mãe preparava a ceia enquanto fintava a massa para os coscoréis do Natal, e, cautelosamente, conjugando com esforço o movimento dos pés e das mãos, trepa pela escada até ao último degrau. Ainda olhou para baixo, mediu com os olhos a altura do seu atrevimento e chegou a despontar-lhe algum receio de cair daquelas alturas onde nunca havia chegado.
Tudo passou rapidamente. De olhos cintilantes a respirarem curiosidade, espreita primeiro a medo, olha depois devagar, devagarinho, no escuro que, pouco a pouco, se ia revelando com uma ténue claridade. Muito lenta, lentamente, os seus olhitos foram-se ajustando ao espaço que, afinal, não era assim tão escuro, não, alimentado, como estava, por um ténue raio de Sol que uma velha e enegrecida telha de vidro deixava entrar. Arrastou o pequeno corpo com redobrado esforço e entrou naquele espaço misterioso que tanto lhe alimentava a imaginação.
O sobrado era pequeno como a casa, ou mais pequeno ainda, e estava atulhado de bugigangas que ali foram arrumadas e depois esquecidas: pequenos pedaços de madeira, um banquito desequilibrado, de madeira também, a que faltava uma das pernas, um tacho roto sem qualquer préstimo, alguns livros e cadernos já roídos pela traça e quinquilharia indecifrável. Tudo muito velho e sujo, coberto até de alguma fuligem depositada pelo fumo da cozinha sem chaminé. Mas por isso lhe despertou maior atenção. Sem reparar que a roupa que trazia vestida ia estando mais suja que todo aquele espaço, Gil mexeu e remexeu naquela tralha como quem procura um tesouro escondido nos escombros de um edifício abandonado e, de tanto remexer, acabou por despertar a atenção da mãe atarefada nas lides da cozinha.
– Gil. – Chamou ela, sem se aperceber bem de onde provinha aquele barulho.
O Gil teve um momento de hesitação na resposta e fez o silêncio de consciência apanhada em falta. Foi quando, surpreendentemente, viu a borboleta branca pousada numa pequena caixa de madeira em que o raio de Sol, já esmorecido, se reflectia na fuligem que a cobria. A curiosidade, que era grande, mais aumentou quando reparou que a borboleta levantara voo, deixara o sobrado pousando em cada patamar da escada e saíra pela janela por onde havia entrado. Se a borboleta branca o trouxera ali, sentiu então vontade de descer com ela. Mas aquela caixa espelhada pelo raio de Sol foi uma atracção maior. Ao alcance da mão, preparava-se para a abrir quando a mãe voltou a chamar.
– Gil, onde estás? Vem aqui.
O Gil deu um salto como quem fora apanhado em flagrante a roubar um tesouro escondido, mas, tremelicando, abriu a caixa, viu e imediatamente a fechou ao ouvir novamente a voz da mãe.
– Gil, onde te meteste? – Ia dizendo a mãe já aflita quando, lá do alto, ouviu a voz do filho:
– Encontrei o Menino Jesus, mãe. Está dentro desta caixa coberta de pó e fuligem.
Assustada, a mãe, num fôlego, trepa pela escada com medo de que filho pudesse cair e nem prestou atenção às palavras do filho. Abraçado à caixa e ao peito da mãe que, com dificuldade e todas as precauções, ia descendo, devagarinho, de degrau em degrau, o Gil ia repetindo:
– Mãe, encontrei o Menino Jesus! Encontrei o Menino Jesus!
E quando, já no chão, a mãe se preparava para repreender o filho, o Gil pediu desculpa à mãe com um beijo e, abrindo a caixa, disse entusiasmado:
– Olha, mãe, como o Menino Jesus, cá dentro, está limpinho e aconchegado num paninho bordado nesta caixa velha e suja. É o seu bercinho embalado pelo calor que vem lá de baixo, da lareira. E sorri para nós, estendendo os braços. Foi a borboleta branca que me ajudou a subir a escada. – E, com uma alegria espelhada no rosto, contou à mãe a história da sua aventura.
Com os olhos onde começaram a assomar umas lágrimas incontidas, a mãe abraçou Gil com um abraço do tamanho do mundo enquanto, emocionada, ia dizendo:
– Não, filho, não foi uma borboleta que te levou ao sobrado, não. Foi um anjo. Um anjo daqueles que avisaram os pastores do nascimento de Jesus em Belém. O Menino Jesus nasceu na nossa casa, Gil.
– Foi um anjo que me guiou. – Dizia o Gil, batendo palmas.
– Sabes, Gil, – acrescentou a mãe – a tua avó sempre me disse que havia na família uma imagem do Menino Jesus que se perdera quando, em tempos muito antigos, houve necessidade de proceder a alterações na casa da família. Desde então nunca mais tinha sido encontrada.
– Nem tu, mãe, tinhas visto este Menino Jesus?
– Nem eu, filho, nem os teus avós. Estou a vê-lo pela primeira vez.
O Gil, mais feliz ainda, abraçou a mãe, enquanto ia dizendo:
– Então, este é o Menino Jesus da nossa família?
– É, filho, desde tempos que já lá vão. E foste tu que o encontraste.
– Fui eu que o encontrei guiado pela borboleta branca que era um anjo. – Acrescentou o Gil batendo novamente palmas a dar saltos de contentamento.
Sentados à janela, ambos contemplaram por momentos aquela imagem resplandecente de ternura. E a mãe ia meditando: “Como em Jerusalém, este Menino Jesus estava perdido e foi encontrado.” E a meditação só terminou quando o pai chegou com os outros três filhos. Já era noitinha.
– Esta é uma história verdadeira. – Dizia o Gil, narrando a sua aventura ao pai e aos irmãos.
E fez-se festa naquela casa.
A ceia desse dia teve o Menino Jesus no centro da mesa que sorria de alegria. Depois, ao serão, a fritura dos coscoréis de Natal foi feita de música e oração agradecida.
E sempre, desde então, em cada Natal, uma borboleta branca, branquinha de todo, aguarda, à entrada da gruta do Menino Jesus, a chegada do Jacinto com as ovelhas e o cão chamado Piloto.
Guarda, 7 de Dezembro de 2023