Há dias passei mais uma vez uns tempos em Lisboa. Embora por razões familiares, não pude deixar de passar pela modernidade da zona oriental da cidade, onde um armazém de luxo comercial enfeitado de Natal se casa com uma central de comboios e autocarros que deixam e recebem, a todas as horas, viajantes vindos de outras bandas ou a ir para um além onde sonham com a felicidade. É época da ânsia e do esplendor consumista a que o Papa Francisco acaba de se referir na visita recente à ilha de Córsega.
É verdade que os meios de comunicação social têm vindo a falar com alguma frequência de como desde há anos vêm aumentando os sem-abrigo em muitos locais da capital. Mas esse saber mediático, por mais forte que seja, é bem reduzido quando as imagens já não são as de reportagens passadas no decorrer de um tempo jornalístico, mas vividas em tempo real quando passamos num passeio e os encontramos ali encostados à parede, estendidos e embrulhados num cobertor velho ou num cartão de um comércio qualquer e, ao lado, um boné com algumas moedas e uma marmita a simular refeição. É aí que dou comigo interiormente paralisado sem reacção, como que colado aos mais mirabolantes sentimentos de quem assiste a um espectáculo de tragédia enquanto, do outro lado da rua, se festeja um consumismo desenfreado a poucos dias do Natal.
Não sei se a expressão «Deus sem abrigo» não será uma contradição nos termos. Parece que Deus, se é Deus, terá sempre abrigo. E um abrigo eterno. É Ele o abrigo de tudo. Mas, mesmo quando o Filho deixou a companhia do Eterno Pai e se veio abrigar na Terra, a Terra foi seu abrigo. Fez-se Homem e, como humano, encarna também todas as vicissitudes humanas.
Mas, eis a incompreensível contradição, os homens da Terra não o receberam. Negaram-lhe abrigo logo ao nascer, precisamente quando uma criança mais precisava de abrigo. Valeu uma cabana de animais onde os pais se puderam abrigar.
Cabana, gruta, choupana, barraca, casebre, tugúrio, palhota ou mesmo lapa, seja qual for a palavra, o abrigo desta família de Nazaré foi um casinhoto rústico e pobre construído no campo, onde se encontrava uma manjedoura preparada com feno para os animais comerem quando regressassem do trabalho ou das pastagens campestres. Enfim, um estábulo. Um curral. Assim fala o Evangelista Lucas: «E deu à luz o seu Filho primogénito, envolveu-o em panos e reclinou-o numa mangedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.» [Lc 2,7].
Nascidos e a viver em meios urbanos, os meninos humanos de hoje mal saberão o que é uma manjedoura que, muitos deles, nunca terão visto. De madeira ou de pedra, ou pedra e madeira simultaneamente, ela ali estava, esta mesa de animais, para ser berço de Deus nascente envolto em panos tecidos com amor e carinho por uma mãe de todos os cuidados. De nada serviria, naquele momento, o bercinho que o carpinteiro José havia preparado com especial carinho na oficina de Nazaré.
Não se conhecem as condições desta gruta, mas, choupana de animais que era, a cabana teria ao menos a vantagem de um ambiente quentinho para uma criança prestes a nascer. De animais que era, aquela cabana, gruta, choupana, barraca, casebre ou palhota, aquele Menino nascente teria a recebê-lo animais domésticos, como uma vaca e um burrito de que tradicionalmente se fala, mas não faltariam outros animais minúsculos, como moscas importunas que poderiam, ocasionalmente, fazer rir o Menino com as cócegas nos pezitos descobertos, como já encontrei num conto de Natal.
Naquele tempo, tempo oportuno dos planos divinos, uns ouviram e outros viram. Mas ambos partiram sem demora. Uns ao som dos Anjos e outros à luz de um sinal nos céus. Mas ambos partiram guiados pela fé alimentada por sinais. Ambos, uns ouviram e outros viram sinais que a fé interpretou.
Uns ouviram os Anjos a cantar glorificando a Deus e augurando a Paz na Terra aos homens de boa vontade. Outros viram uma estrela, uma estrela estranha. Estrela que augurava o divino acontecimento. Uns eram pastores e vieram adorar o Deus da Paz oferecendo o que tinham para oferecer: os cordeirinhos mais belos do seu rebanho. Outros vieram mais tarde. Eram uns Magos de um incerto Oriente e traziam o melhor que tinham do ouro, do incenso e da mirra. Mas uns e outros de coração aberto para receberem a graça da redenção.
Uns, os pastores, ouviram o concerto angelical e deram logo com a divinal cabana. Os outros, os Magos, perderam-se nas ruas de Jerusalém e inquietaram um Rei na terra que logo decidiu eliminar as criancinhas do Reino e provocar a migração forçada da Santa Família para o Egipto. Sem casa e depois obrigados a sair do país. Assim se retrata a situação de Deus que encarna entre os seres humanos e passa, logo ao nascer, pelos problemas de habitação e de condições adequadas na sua pátria. A pobreza do nascimento sem abrigo condigno deu lugar a uma vida de estrangeiros em terra estranha e a ter que procurar refúgio e trabalho lá longe para poderem sobreviver. Há mais de dois mil anos como ainda agora, num século em que, em razão da guerra ou da pobreza, miséria e perseguições, tantos são forçados a abandonar as suas terras e emigrar para terras longínquas e estranhas em procura da paz e do pão.
Não haverá quadro mais sublime a convocar os humanos viventes para a mais bela contemplação: numa cabana de animais jaz numa manjedoura com feno um Deus feito Menino com Maria e José e alguns animais que, encantados com a surpresa de tal companhia, também se aquietam em contemplação extática. E a beleza refulge plena do quadro que os olhos vêem e o milagre que ali acontece arrebata a alma.
Foi em virtude deste arrebatamento espiritual da alma, conjugada com a imaginação criadora, que a tradição, seguindo o exemplo de S. Francisco de Assis em Greccio, no século XIII, vem instalando presépios nas igrejas e instituições, nas praças e habitações, a que a religiosidade popular portuguesa foi acrescentando outras figuras da comunidade humana que, não tendo entrado no espaço físico da cabana de Belém, como entraram os pastores e os magos, nem, talvez, no presépio de São Francisco, estavam todos no coração de Deus: o lavrador, o ferreiro, o padeiro, a aguadeira, o sapateiro, o alfaiate, a lavadeira e o moleiro. Enfim, representantes de todas as profissões. E, para abrilhantar a festa, uma banda musical de farda colorida numa rua de areia que, vindo do povoado anichado num vale das montanhas, se dirige à cabana da Família Sagrada.
E a sociedade de consumo pegou na ideia. Também os centros comerciais instalam presépios nos seus espaços. Duvida-se, porém, que os passantes, carregados com consumos do seu agrado, pouco lhe liguem para além de questionarem a dimensão estética e decorativa.
É assim entre nós. Mas lá para o Oriente Extremo, aonde o Ocidente levou a mensagem deste Menino de Belém, talvez não seja bem assim. Não esquecerei aqueles dois membros da comitiva de vietnamitas que há um ano nos visitaram trazendo na bagagem um monumento de homenagem agradecida ao guardense P. Francisco de Pina. Quando na visita ao edifício dos Paços do Concelho passaram diante do presépio que se encontrava instalado no átrio de entrada sob a escadaria nobre daquele espaço autárquico, aqueles dois vietnamitas ajoelharam e rezaram. Ali, naquele dia de festa autárquica, estes vietnamitas, atentos aos sinais do tempo e do lugar, foram o abrigo de Deus em terra estrangeira.
Contraste que faz pensar. Enquanto no Ocidente nós trocámos a Luz de Deus pelas luzes do comércio, aqueles vietnamitas encontraram naquele presépio da casa municipal da Guarda o sorriso de Deus que um dia lhes foi levado desta montanha da serra beirã.
Santas Festas Natalícias.
Guarda, 17 de Dezembro de 2024
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com
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