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Um bilhete para Vila Fernando

Perdoem-me os leitores que não estudaram latim, ou que já o esqueceram, mas, para não ficarmos desligados totalmente das nossas raízes e pairar no ar do nosso que fazer imediato,

se queremos deveras ter um amanhã, importa ir lembrando, uma e outras vezes, as origens da nossa língua e da nossa cultura – afinal, as origens do que somos hoje. Com a devida vénia, aí vão dois versos do latino Horácio: Ibam forte Via Sacra, sicut meus est mos, nescio quid meditans nugarum, totus in illis. Traduzindo: Indo por acaso pela Via Sacra, conforme é meu costume, a meditar muito concentrado não sei em que ninharias…
Naquele dia de Verão – e por isso me lembrei do «velho e fiel amigo Horácio» do Almeida Garrett de As Viagens na Minha Terra – ia eu numa rua central da Guarda, uma espécie de Via Sacra da Roma horaciana, alheado das realidades circunstantes e muito concentrado nos meus pensamentos – umas «ninharias», talvez, como as cantadas por aquele lírico e satírico poeta romano, – quando fui surpreendido por um toque suave num dos ombros. Quem assim interrompia as minhas lucubrações de rua não me estava a saudar com o tradicional «como estás», mas dirigir-se-me antes com este pedido inusitado: «um bilhete para Vila Fernando»! Estranha solicitação, sem dúvida! E tão estranha a senti, que me fez esquecer as «ninharias» em que pensava e até foi esquecido o habitual cumprimento!
Acontece-me, frequentemente, nos meus passeios de rua, cruzar-me com conhecidos e amigos, não dar pela sua presença e ser surpreendido com um cumprimento de protesto, «já não se saúdam os amigos». Como se compreenderá, estas situações têm-me causado algum embaraço, sobretudo quando elas acontecem repetidamente com as mesmas pessoas, ou, de modo particular, com alguém que eu não consigo identificar de imediato. E acontece tantas vezes!… Nestas alturas, um pedido de desculpa e uma saudação mais efusiva superam o constrangimento. Mas a falha lá está e sempre ela me deixa, depois, ensimesmado, pensando na triste figura da minha falta de cortesia.
Naquele dia, porém, foi outra a saudação. O pedido de «um bilhete para Vila Fernando» deixou-me completamente desapontado e, num relâmpago, vieram-me à memória os tempos em que, na então Sociedade de Transportes ou na bilheteira da estação da CP, eu pedia um bilhete para Vila Fernando, a estação de comboios que mais perto ficava da minha aldeia. Eram outros tempos e outra era a situação. Naquele momento, porém, alguém parecia ver-me cobrador ambulante, a vender bilhetes para Vila Fernando, ou para outro lugarejo qualquer, algures na pequenez do nosso país ou nas lonjuras da Terra!
Com pedido tão estranho, em plena rua da cidade, naquele dia de Verão, um ex-colega de profissão deixou perfeitamente cerceado o meu entendimento. Aquela atitude estava a superar em absoluto a minha pobre intuição: por momentos emudeci, sem saber o que dizer. O colega, apercebendo-se do meu constrangimento, aponta para a bolsa que eu trazia a tiracolo e repete o pedido: «um bilhete para Vila Fernando». Ainda pensei que estaria a lembrar-me a necessidade de maior cautela já que os carteiristas poderiam ter chegado à Guarda. Mas com um pedido de um bilhete?…
Este amigo vinha com humor e, ao ver-me de sacola a tiracolo, adereço pouco habitual em mim e que não lhe parecia coadunar-se com a minha identidade, imaginou-me, brincando, cobrador, à moda antiga, de uma empresa de transportes colectivos. Esclarecida a situação, brincámos os dois com a situação e estabeleceu-se a conversa costumeira destes encontros fortuitos.
Se não me lembro, como o latino Horácio, das «ninharias» em que entretinha antes o meu pensamento, recordo bem aquilo com que o meu espírito se ocupou até chegar a casa. Ia então imaginando que a situação por que passara bem podia constituir-se como metáfora da vida e eu, de sacola ao ombro, como pobre exemplar do homo viator, que é cada pessoa humana a caminho de uma estação situada para lá do horizonte.
A vida foi-nos habituando a andar pendurados a uma série de «ninharias» com que carregamos a nossa existência: ele são os documentos e cartões disto e daquilo, ele é o telemóvel que já não se dispensa, ele são as chaves de uma e outra porta… Ele é mais isto ou mais aquilo… e ainda umas bugigangas a que nos deixámos prender. Em tempo quente de Verão, limitados os bolsos do vestuário, a sacola dá então muito jeito, pese embora a figura por que nos pode fazer passar. Cobradores de bilhetes, por exemplo. Desculpamos, por isso, a sua pouca elegância pela utilidade que nos vai prestando, mas também pelo vigor do pensamento – todos somos em pouco filósofos da existência – que ela pode despertar em nós, seres a caminho.
Ibam forte Via Sacra. Ainda a caminho de casa lembrava, com Pessoa, que o rio que corre pela minha aldeia é mais belo do que o Tejo das naus: ali aprendi a sair de casa sem cartões nem telemóvel e a deixar a porta de casa sempre aberta para quem quiser entrar. Porque dali não se saía carregado de ninharias, mas de sacola leve feita da humanidade nascida e alimentada no lar. É com ela que caminhamos e com ela nos saudamos quando nos cruzamos na Viagem.
É esta outra sacola que nos mantém vivos. Por ela e com ela, sacola sem medida, meio cheia e meio vazia, sempre seremos suficientemente pobres a pedir um bilhete para a Viagem e suficientemente ricos para o facultarmos aos outros.
Ibam forte Via Sacra, sicut meus est mos – Passageiros peregrinos na Via Sacra da Vida, vamos andando em Viagem. Dando e recebendo bilhetes, sempre Alguém nos espera e sempre esperamos Alguém!
8 de Setembro de 2016

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