Talvez porque o tempo de férias já se vai esgotando e o novo ano lectivo aí está para ser vencido, hoje encontro-me virado para a gramática. Estranho assunto, será. Mas não se assuste leitor e não desanime. Venha antes comigo e passeemos o tempo com os modos gramaticais que possuímos para falar dele. Ou das coisas e eventos que passaram por ele. É que se encontram por aí um tanto esquecidos, mas, se estudados, andam a dizer-nos que vivemos de tal maneira absorvidos pelo momento que, neste falar presentista, vamos enfraquecendo a Língua Portuguesa com que aprendemos a falar e a pensar. E, com tal, perdendo também a riqueza e poder comunicativo.
A culpa não é da nossa gramática, não, porque os tempos do tempo lá estarão ainda, mesmo que os ignoremos nos nossos falares. Verdade é, isso sim, que nos deixamos encantar tanto com os cantos de sereia que embalam o nosso presente imediato que os tempos gramaticais parecem ter desaparecido dos horizontes dos nossos dizeres. Ou dos nossos viveres, o que será bem mais trágico.
Bem sei que há quem diga que só se pode viver o presente. «Um dia de cada vez», diz-se por aí, tal como aqui e ali vou – ou vamos – ouvindo. Mas isso, é claro, é só meia verdade ou nem sequer meia verdade será. O presente já sempre foi e, por isso, nunca podemos medir o presente a não ser com engenhosos artificialismos culturais de que nem nos apercebemos. Verdade é que, se somos presente, somos presente fruto do passado, mesmo quando, no presente fugidio, projectamos o futuro indefinido. Também os sonhos do futuro, no presente, possuem sempre raízes no passado. Queiramos ou não, somos a nossa biografia desenhada nas histórias de que se faz a História.
E se o tempo nem sequer existir?! Estranha pergunta admirativa esta, certamente. Mas não sou eu a fazê-la, são os cientistas e ela aqui fica tal como a formula, em termos hipotéticos, o escritor e jornalista especializado em astronomia Colin Stuart no final do pequeno mas bem concebido livro sobre o «Tempo: 10 Coisas Que Deve Saber». «O tempo pode até nem existir» é o título do último capítulo. A hipótese é-nos tão desconcertante que seremos tentados a imaginar que a ciência é uma espécie de loucura. Ou, para sermos meigos e simpáticos, uma forma de poesia. E será. Se nos colocarmos a saborear os meandros da astrofísica ou da microfísica, do infinitamente grande e do infinitamente pequeno e, já agora, do infinitamente complexo, bem podemos concluir que tal realidade é um poema do Criador Primeiro e que os cientistas astrofísicos são os poetas que conseguem saborear melhor essa beleza da luz astral.
Mas vamos à gramática a aprender a falar do tempo ou dos nossos afazeres no tempo do mundo terrestre em que nos encontramos, muito aquém, claro está, das zonas insondáveis da realidade física por que se passeiam os grandes astrofísicos em cujas mãos o tempo se esboroa ou se esfuma a ponto de parecer dissolver-se.
Verdade é que o tempo, o mistério do tempo, acompanha permanentemente a existência humana e, por isso, ele encontra-se lá, na nossa gramática, em forma de verbo ou em forma de advérbio, essa maneira de adjectivar o verbo, conforme o indica a composição da palavra: «ad + verbo». Ou, então, em forma de conjunção. É o tempo na gramática a assumir-se como a gramática do tempo. E – ai de nós! – quando tudo pensamos na efemeridade do presente, como se o presente fosse o tudo da vida, então lá se vai o pensamento complexo, expressão da complexidade do ser, particularmente do ser humano que é, esse ser infinitamente complexo, embora infinitamente pequeníssimo na infinitude abissal do espaço cósmico.
Vamos, então, a redescobrir o passado e o futuro tal como nos ensina a gramática mais simples. Para pensar o passado é preciso uma conjugação do passado e para pensarmos o futuro mais importa ainda a conjugação do futuro. Lá, no futuro gramatical, onde o futuro pode ser passado e o passado pode ser contemporâneo do presente. Se não sabemos a conjugação do passado e de futuro, empobrecemos o pensamento e, empobrecendo o pensamento, empobrecemos a existência e a riqueza da vida. É disso que nos fala o pretérito, perfeito, mais que perfeito ou imperfeito, do indicativo ou do conjuntivo, sobretudo se for conjugado com o condicional, uma forma verbal decisiva para o pensamento hipotético-dedutivo, essa forma de raciocínio de importância suma no desenvolvimento científico e com o qual facilmente caímos em sofísticas conclusões. É disso que nos fala o futuro gramatical, seja conjugado no indicativo seja no conjuntivo, em forma simples ou composta.
Confuso? Talvez não tanto como poderá parecer. Somos seres temporais e não poderemos captar a temporalidade, a sucessão de eventos no tempo, a sua duração relativa, no passado ou no futuro, sem uma linguagem gramatical pela qual possamos distinguir o que é, o que será ou já foi, o que poderia ter sido e o que poderá ser depois do que realmente aconteceu; o que poderá acontecer e o que poderá ter acontecido, o que acontecerá depois do que aconteceu, o que teria acontecido se tivesse havido outro acontecer.
Confuso, ainda?
Não sei se devamos admirar, com uma sã inveja, aqueles povos que utilizam a mesma palavra para dizerem «amanhã» e para dizerem «ontem» ou até aquelas línguas que não possuem palavras para dizerem «ontem» e «amanhã», como os peritos da antropologia dizem existirem. Onde se situa o seu tempo e como se conjugam os seus verbos? Não poderei saber a resposta e nem sei se tal pergunta possui algum sentido aí, onde não existem, ou se fundem, aqueles advérbios de tempo, onde o «hoje» absorve o «ontem» e o «amanhã».
«Eu sou do tempo» – como é habitual ouvir – em que se estudava gramática. A gramática tradicional, claro. Aquela pela qual se ficava a saber que os verbos, por serem enunciadores de acção, expressão de qualidades, estados ou existências, constituíam o centro da frase, mesmo quando não estão expressos, razão pela qual se constituem como a forma gramatical mais variável. Eles poderão variar no modo [indicativo, conjuntivo, imperativo, condicional e infinitivo], no tempo [presente, pretérito (imperfeito, perfeito e mais-que-perfeito) e futuro (imperfeito e perfeito)], na voz [activa e passiva], na pessoa [eu, tu, ele] e no número [singular e plural], a que se deverá acrescentar a possibilidade de os tempos poderem ser compostos com os auxiliares “ter” e “haver”.
Daí a complexidade da sua conjugação, que tanto baralhava, outrora, as nossas mentes em amadurecimento, mas dela também a riqueza da expressão comunicativa da vida que ela possibilita. Uma maravilha verbal cuja beleza requer algum esforço mental, sabendo que os verbos expressam as formas como nos situamos na vida. E, enriquecidas com a qualificação adverbial, são a expressão do modo como decorre a nossa existência situada em tantos haveres circunstanciais. A decorrência da nossa vida passa por lá, pelas formas temporais dos verbos, tantas vezes qualificados com advérbios.
Ouvimos falar de guerras, e a guerra parece não passar. Como será conjugado o tempo em que a guerra já tiver sido? E quem o virá a conjugar?
Como será conjugado pelos nossos vindouros o tempo que agora vivemos quando olharem para o estado em que lhe teremos deixado a Terra, a casa comum, nossa e deles? Bem o sabemos, mas falta a acção: impõe-se agir com o tempo da Criação por um futuro de esperança. Para nós e, sobretudo, para eles, que hão-de vir.
Guarda, 25 de Setembro de 2024
António Salvado Morgado
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