Nem sempre é fácil escolher um tema para estas crónicas quinzenais. Não é que faltem temas ou assuntos. O problema é precisamente o oposto. Há assuntos a mais. Eles são uma infinidade incontável. A questão é escolher, é decidir. E o maior problema não é decidir, mas decidir pensando na diversidade dos leitores, que terão interesses e visões diversificadas das coisas. Eu sei, sinto isso, e os ecos que me chegam destes textos provam-no à saciedade. E que direi eu sobre tal? Humanos que somos, muito humanos, mas todos diferentes. Sobre tal não direi nada. Nada mesmo? Já disse alguma coisa. Uma coisa de nada, certamente, ou um nadinha, que é como quem parece dizer «um nada pequenino».
Se o nada é nada, porque falamos do nada? Que há em “nada” para que o termo “nada” exista e seja tão vulgar a sua utilização? Baste lembrar expressões idiomáticas de uso corrente em que «o nada» é o protagonista da linguagem: «Isso não é nada», «Aqui nunca se passa nada», «Não acontece nada», «Não percebo nada», «Dar em nada», «Daí a nada», «De nada», «Um quase nada», «Absolutamente nada», «Mão cheia de nada». E até se diz e ouve «Nada de nada» e «Menos de nada», como se o nada se pudesse retalhar-se noutros nadas, em nadas mais pequeninos ou até negativos. E que dizer do «Tudo ou nada» que ouvimos por aí a passear-se como se o «tudo» e o «nada» fossem duas «realidades» contrapostas?
Estratagemas da língua, dir-se-á com razão. Estratagemas, contudo, que não deixarão de levantar interrogações filosóficas. E fico a olhar para o célebre livro do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre [1905-1980] intitulado «O Ser e o Nada». Mas, muito antes de este filósofo francês aparecer a substantivar o nada em título de complexo livro que fez de luzeiro a muitos em tempos idos, já os subtis pensadores iniciáticos da filosofia ocidental, vários séculos antes da nossa era, andavam às voltas com o nada. Assim Parménides [588-524 a.C.] dizia que «Nada pode ser gerado do nada», Anaximandro [610-546 a.C.] que «A Terra navega no espaço apoiada no nada» e Anaxágoras [500-428 a.C.], antecipando-se à citação apócrifa de químico Lavoisier [1746-1784] «Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma», diz que «nada nasce nem perece, mas as coisas já existentes combinam-se e depois separam-se novamente.»
Ao que parece, e até como a linguagem corrente o mostra, não poderemos falar do ser das coisas sem o confrontarmos com o nada, o não ser. Terá sido também por isso que o mesmo filósofo de Mileto, Parménides, tenha ficado célebre com as duas frases que continuam hoje a ser citadas: «O ser é, o não ser não é». Só que, como dirá Hegel [1770-1831] muito mais tarde, o ser, pensado na sua indeterminação absoluta, é nada. Ou seja, dialéctica e hegelianamente falando, o ser é nada.
Baste de exemplos para nos lembrarmos que o nada se passeia não só pela nossa linguagem corrente, mas também, ou sobretudo, pelas correntes do pensamento humano. Da Filosofia à Ciência. Dos tempos remotos à actualidade. Da literatura e da Vida. «Ser ou não ser, eis a questão» (To be or not to be, that is the question) é a conhecida frase dita por Hamletno monólogo da primeira cena do terceiro acto na peça homónima de Shakespeare [1564-1616]. Só que aqui o «Ser ou não ser» significava «viver ou não viver».
«Não somos nada» é uma expressão que se ouve frequentemente, de modo particular nestes tempos de guerras e nestes dias do mês de Novembro em que mais nos lembramos dos nossos defuntos, aqueles que, mesmo considerando a etimologia [“defunctus”, formado por “de” – fora – e “functus”, particípio passado do verbo “fungi” – realizar, efectuar] deixaram cumprida a sua missão nesta vida e se encontram na outra.
Mas avancemos um pouco mais com a lição do Latim cujo fio – o fio, fixe o leitor a palavra – a Língua Portuguesa vai perdendo, para seu mal, da cultura e dos seus falantes.
Ainda há dias o recordava noutro contexto da escrita. A palavra latina para significar “nada” é o conhecido termo “nihil”. Mas, desvendando a raiz etimológica de “nihil”, poderemos descobrir outras realidades de interesse linguístico. Etimologicamente o “nihil” latino é uma contracção de “nihilum”, termo latino formado pelo prefixo negativo “ni” ou “ne” e “hilum” [“fio”]. “Nihilum”, “nihil” significa, segundo a etimologia e literalmente, “sem fio”. Portanto, sem nexo, sem qualquer relação. Uma realidade que “perdeu o fio” é uma realidade empobrecida, decaída, reduzida a uma espécie de nada. Realidade nadificada, digamos.
Chegados aqui, o interesse linguístico explode em interesse humano por via da analogia e o fio linguístico virtualiza o «fio da meada». O fio do bom senso e o fio da razão. De tantas meadas. Tantas como os caminhos dos afazeres da vida. Ele virtualiza, em última instância, «fio da vida» e o «fio da existência». Quando a vida «está por um fio» encontra-se próxima de um “nada” e quando a existência perdeu o fio entrou naquilo que os filósofos chamam «niilismo». O processo niilista de que falam os pensadores do existencialismo consistiria na perda do fio, na destruição da sua relação substantiva, na perda do sentido da vida e na emergência do absurdo da existência humana.
Todo os caminhos vão dar aos cemitérios nesses dois dias do início do mês de Novembro. Ou mesmo em todo o Novembro que é celebrado como o «Mês das Almas». Os cemitérios enchem-se de flores a cobrir as campas e eles parecem germinar em jardins de vida. Os cemitérios são, então, a vida em acto. Acto de vida do aquém, daqueles que ainda se encontram ligados ao «fio da vida» de aqui, e acto de vida do além, daqueles que já se encontram definitivamente religados ao fio que sustém todo o ser. Na perspectica cristã o cemitério é campo santo ou campo de Deus. Ele, lembrando embora o nosso nada, lembra aos crentes a imortalidade e a ressurreição. Morrer é um momento religioso por excelência. Com a morte entra o crente numa nova relação com Deus.
Morte, redução de tudo ao nada ou redescoberta definitiva do fio da vida? Sim é sim, quer negando quer afirmando. Aí onde o tudo é nada e o nada é tudo. Somos e não deixaremos de ser. Mesmo na morte. Ou, sobretudo, na morte. Somos… Não somos… Seremos.
Santo Agostinho propõe-nos que seja a morte a nossa mestra: «Sit mors pro Doctore». O cemitério que etimologicamente significa «lugar para dormir», bem pode ser a escola que ensina a viver.
Guarda, 19 de Outubro de 2024
António Salvado Morgado
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