Os russos foram derrotados na primeira fase da guerra da Ucrânia.
Porque subestimaram a resistência ucraniana? Por deficiências estratégicas do ponto de vista militar? Por insuficiências de planeamento, organização e erros logísticos? Por deficiente convicção dos seus militares envolvidos na ofensiva? Por incompetência do comando e da coordenação dos meios? Talvez um pouco por todas estas razões e por outras que, não sendo eu militar, não sei identificar.
O que sei é que os russos abandonaram a estratégia inicial de avanço sobre Kiev, foram derrotados militarmente no Norte onde os ucranianos retomaram o domínio de cidades que os invasores tinham chegado a ocupar, deixando, ao retirarem, um rasto de sangue, morte e destruição, com sinais evidentes da prática de múltiplos crimes de guerra. Por seu lado, contava-se um número muito elevado de perdas humanas nas suas fileiras bem como de material de guerra: armas, carros de combate, tanques, helicópteros e drones abatidos. E, para humilhação maior, o afundamento, a 14 de abril, do cruzador Moskva, o navio-almirante da sua frota no Mar Negro, joia da coroa de glórias da sua Marinha, sendo muito diferentes as versões russa e ucraniana sobre as circunstâncias do afundamento e do número de baixas e desaparecidos.
A alteração estratégica por parte de Moscovo deveu-se a essa derrota – e não a quaisquer razões humanitárias com que o porta-voz do Kremlin, Dimitry Peskov, na quarta-feira da semana passada, pretendeu comentar a retirada das unidades russas do nordeste de Kiev: “Decidimos dar este passo como gesto de boa vontade para criar condições favoráveis para negociações (com a Ucrânia). Podemos tomar decisões sérias durante as negociações e, portanto, o Presidente Putin ordenou a retirada das tropas da região”. As verdadeiras razões foram outras: as forças russas vinham sendo derrotadas pelos ucranianos após semanas de intensos combates urbanos. Como explica Miguel Monjardino: “Unidades de elite russas sofreram baixas muito pesadas. É razoável estimar que, entre mortos, feridos, prisioneiros e desertores, Moscovo terá perdido cerca de 20% da força que invadiu a Ucrânia a 24 de fevereiro. As perdas de equipamento militar também são muito significativas. Muitas das unidades russas deixaram de ter capacidade de combate e não há muitas reservas verdadeiramente operacionais” – cfr. “A Segunda Fase Da Guerra Russo-Ucraniana”. EXPRESSO; de 8 de abril, pág. 9.
E a Ucrânia? Miguel Monjardino responde: “Grande parte das suas zonas urbanas foi arrasada, as infraestruturas industriais destruídas e mais de um quarto da sua população teve de abandonar as suas casas”. No entanto, a retirada das unidades russas do norte da Ucrânia é uma importante vitória política e militar para Zelensky”. (…) “Foi esta vitória que permitiu a descoberta do massacre de Bucha e da prática sistemática de pilhagens de localidades ucranianas ocupadas pelas forças russas” – ver loc. cit.
Poderá questionar-se se o massacre de Bucha, poderá configurar na sua crueldade e extensão, um crime de genocídio, o mais grave dos crimes contra a Humanidade. Porém, dificilmente os atos criminosos praticados em Bucha poderão tipificar um crime de genocídio. Segundo a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948), “genocídio” integra um conjunto de atos “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, o que parece não ser o caso de Bucha.
Na sequência da mudança da estratégia militar da Rússia na guerra da Ucrânia, foi decidido atacar a região do Leste – ou seja, do Donbas, constituída pelas auto-proclamadas Repúblicas de Luhansk e Donetsk. Ao mesmo tempo, impor a rendição da martirizada cidade de Mariupol, estrategicamente fundamental para a criação de um corredor que permitirá a ligação do Donbas à Crimeia. Mariupol, cujo edificado urbano está destruído em mais de 90%, tem ainda uma bolsa de resistência, defendida por algumas forças da Marinha ucraniana e principalmente pelo Batalhão Azov, um dos mais competentes e o mais problemático e polémico defensor da Ucrânia. Essa bolsa de resistência que, até hoje, recusa render-se às tropas russas (muito superiores em número, equipamento, água e bens alimentares) está concentrada nos subterrâneos do enorme complexo metalúrgico de Azovstal –, em cujos túneis ainda resistem os militares e sobrevivem penosamente entre os escombros milhares de civis. A ideologia de extrema-direita de parte dos militares que integram o Batalhão Azov deu, porém, a Putin a deixa para declarar um dos objetivos da “operação especial” em curso: o de “desnazificar” a Ucrânia, esquecendo os combatentes de idêntica ideologia (de extrema-direita nacionalista) que tem nas suas fileiras.
A “Batalha do Donbas”, a Leste, e em Mariupol e seus arredores, no Sudeste, que já decorre com a ferocidade previsível, encontra uma Ucrânia com dificuldades de resistência – um terreno mais plano, populações mais afetas à Rússia e, sobretudo, neste momento, menos bem equipada “para uma guerra de atrito” (de desgaste e mais longa) com a Rússia. Assim se entendem os pedidos instantes de Zelensky aos países ocidentais reclamando o urgente fornecimento de equipamento mecanizado e de armamento pesado para as suas foças de defesa. Claro está que a perspetiva de satisfação pelos EUA e pelos países europeus das pretensões ucranianas de armamento suscitou reações, com laivos de ameaça por parte da Rússia.
Problema de difícil compreensão para nós, ocidentais, com acesso a meios onde impera o princípio da liberdade de expressão: como é possível que, na Rússia, a popularidade do ditador Putin esteja em alta, apesar das atrocidades toleradas e dos erros militares cometidos? Para além da desinformação sistemática dos media russos sobre a guerra e assuntos conexos, é conveniente ter presente que o Povo russo é dotado de um espírito nacionalista, que vem da raiz dos tempos, e de ambições e sonhos imperialistas que Putin bem conhece. Recorde-se, pelo ano de 1952, o funeral de José Estaline, em que uma fila imensa de oito quilómetros sucessivos de cidadãos a pé serpenteou pela cidade de Moscovo, para prestar homenagem a um dos mais sanguinários tiranos não só da URSS mas de toda a História conhecida.
É verdade que, hoje, o regime político do Kremlin está ideologicamente nos antípodas do que vigorou durante os tempos da União Soviética; também é verdade que os atuais oligarcas russos teriam, por certo, um destino funesto nos tempos da antiga URSS. Mas, se não erro, o POVO russo é, no essencial, o mesmo: continua a reclamar a glória do seu passado imperial – desde os czares até ao termo da União Soviética, a orgulhar-se daqueles que contribuíram para fazer da Rússia um País de Cultura e de Poder, mas, acima de tudo e apesar de tudo, uma potência mundial, capaz de infundir a admiração, o respeito, mas também o medo, entre os restantes povos do mundo. Uma espécie de vertigem de baixo para cima que acabará por o vergar.
Lisboa, 20 de abril de 2022