Pontos de Vista
Quousque tandem, Catilina, abutere patientia nostra? Esta vigorosa interpelação pode traduzir-se assim: Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?
Trata-se da primeira frase do primeiro dos quatro discursos do grande tribuno e jurista romano Marco Túlio Cícero, acusando Lucio Sergio Catilina, cônsul de Roma, de pretender derrubar o governo republicano e apoderar-se, com alguns apaniguados, do poder e dos tesouros acumulados. Estes discursos, produzidos, em 63 a. C., no Senado e no forum, perante o povo, tornaram-se peças clássicas da retórica política, sendo conhecidos como “as Catilinárias”. Constituem poderosas invectivas contra a ambição desmedida e a falta de escrúpulos de alguns políticos golpistas e desonestos. Ficaram na História e, ainda hoje, passados mais de dois mil anos, as acusações de Cícero contra Catilina continuam a ser repetidas ou glosadas. Vejamos então como a invectiva que serviu de lema para este artigo, tem aplicação no dia-a-dia da nossa política interna.
ATÉ QUANDO? Até quando, senhores políticos e banqueiros, até quando vão Vossas Excelências continuar a abusar da paciência do povo e do suor dos contribuintes?
Até quando a nossa paciência vai continuar a ser massacrada com notícias de prejuízos calamitosos da Banca? Não chegaram os milhares de milhões de euros sorvidos nas bancarrotas do BPN, do BES ou do BANIF? As más notícias sucedem-se e continuam a atormentar-nos, pondo em crise o que nos resta de paciência e esperança. Sabemos, abismados, de mais negócios desastrosos cujo balanço se cifra em centenas de milhões de euros, a somar aos muitos milhares de milhões já anteriormente desbaratados.
O Orçamento do Estado (OE) de 2017 leva em conta as consequências dos colossais prejuízos sofridos por aqueles e outros bancos, privados ou públicos.
Banqueiros e gestores, até há poucos anos tidos como exemplares, são hoje alvos em casos de polícia. O cidadão comum interroga-se: até quando teremos de esperar para conhecer os responsáveis pela hecatombe financeira que nos dizima, as cumplicidades (ou as promiscuidades) entre banqueiros e políticos, os negócios desastrosos, feitos por instituições que pareciam credíveis?
Até quando vamos continuar a ser surpreendidos pela queda desses “gigantes com pés de barro”, tidos, durante muito tempo, como gestores exemplares, verdadeiros génios empresariais, mas que, afinal, conduziram as instituições onde pontificavam à destruição e ao descrédito?
Vejamos rapidamente alguns números retirados de fontes insuspeitas. No próximo ano o Governo vai gastar mais 561,2 milhões de euros com o que resta do Banco Português de Negócios (BPN), que, desde a nacionalização, em 2008, já custou mais de 3.200 mil milhões de euros (1,7% do produto interno bruto). Escreve Carlos Fiolhais: “O pequeno banco privado foi nacionalizado em 2008, passando a parte má para a Caixa Geral de Depósitos (CGD), o que poderá vir a custar a todos nós a espantosa soma de 6.300 milhões de euros”.
De acordo com o mesmo OE, alguns restos do BES, o grande banco “resolvido” em 2014 com a criação do Novo Banco, e do Banif, intervencionado em 2015, com a venda da parte boa ao Santander por um preço irrisório, vão passar para a esfera pública, com um custo no próximo ano de 85 milhões de euros. Retenha-se que “o BES foi resgatado por uns estonteantes 4.900 milhões de euros, desconhecendo-se os prejuízos que a operação causará ao erário público”. Por sua vez, o Banif custou a todos nós 2.250 milhões, quantia chocante em face da menor dimensão do banco.
Finalmente, o OE para 2017 permite uma injecção de capital na CGD de 2.700 milhões de euros, destinados a cobrir prejuízos acumulados ao longo dos últimos anos.
Tome-se o diário “Público” de 2 de Novembro, e leia-se a manchete da capa: “CGD arrisca perder mais de 900 milhões com “caso La Seda”. Em subtítulo, a páginas 2, pode ler-se: “Há dez anos, a Caixa recebeu orientações políticas para entrar numa aventura que se revelou um erro. E hoje chegou a factura”. O artigo arrepia! Nele se escreve que “este é um dos principais problemas que o presidente da CGD tem para resolver e que resulta de decisões tomadas quando José Sócrates era primeiro-ministro e à frente do banco estavam dois socialistas: Carlos Santos Ferreira e Armando Vara, o seu vice-presidente, que o poder político veio a “transferir” pouco depois, em “missão de serviço”, para o Millenium BCP, onde problemas jurídicos com contornos alegadamente criminais continuaram a acumular-se em seu redor.
Deixando agora de lado outras cifras – o espaço do jornal não permitiria o enunciado de todos os prejuízos e a notícia dos negócios ruinosos -, detenhamo-nos no assunto do momento: as condições “negociadas” entre o actual Governo (ou terá sido só pelo Ministro Mário Centeno?) e a nova Administração da CGD em sede de estatuto funcional: condições remuneratórias e dispensa de entrega das declarações de rendimento e património dos novos gestores no Tribunal Constitucional (TC).
Uma trapalhada incrível, uma história imprópria de um Estado democrático adulto.
Quando, há algumas semanas, Marques Mendes destapou o escândalo (a propósito, qual terá sido a sua fonte?), admitiu a possibilidade de a dispensa de entrega das declarações no TC ter sido um lapso do Governo, que mais não pretenderia do que isentar os novos administradores da Caixa do “estatuto do gestor público”. Afobado, o Ministro das Finanças, apressou-se, porém, a esclarecer que não se tratara de um lapso. Logo de seguida, figuras marcantes do PS, a começar por Carlos César, vieram discordar do Ministro das Finanças, manifestando o entendimento de que António Domingues e os restantes membros da sua equipa não podiam furtar-se à obrigação de transparência que os obrigava à entrega das declarações no TC. Entendimento que se revelou consensual junto dos partidos da esquerda radical ou entre os da oposição. Só António Costa, quando perguntado, respondeu a contra gosto que, pela sua parte, já cumprira o seu dever, tendo apresentado a declaração nos termos legais. O Presidente da República também veio a terreiro defender a mesma tese: transparência “oblige”!
E agora? A bola está nas mãos de António Domingues. A CGD não pode correr o risco de ficar sem administração – o prejuízo seria incalculável, a somar aos colossais prejuízos já contabilizados – mas a gestão da coisa pública tem regras que merecem acatamento e respeito. Confuso? Decerto. A pedir que se deixe de andar a jogar infantilmente ao “esconde, esconde”. É que a paciência, mesmo para aturar crianças, tem limites…
POST SCRIPTUM – Donald Trump ganhou as eleições nos EUA. Para os que (se) perguntam, “Como é que isto aconteceu” talvez a resposta pudesse ser: “Olhem o Mundo zangado!”. Há demasiado descontentamento, demasiado cansaço, demasiada desconfiança, relativamente aos partidos e aos políticos em geral. E também demasiada inconsciência e falta de sentido histórico (tanto quanto ao passado como quanto ao futuro), muita ignorância e muita urgência na mudança, demasiado medo e demasiada raiva. Foi um salto muito arriscado – esperemos que não seja suicida.
Lisboa, 09-10-2016