Eu sei que as montanhas cantam. Sei-o desde a meninice quando comecei a ouvir cantar as aves empoleiradas no beiral dos telhados ou nos ramos de castanheiro e quando chegava aos meus ouvidos o zumbido de um insecto ou o silvar do vento que penetrava, atrevido, em qualquer vereda e cadenciava a dança das folhas outonais.
Eu sei que as montanhas cantam. Sei-o, particularmente, desde a minha juventude, desde que participei, em mês de Julho, num acampamento juvenil na Serra da Estrela. Já lá vão dezenas de anos, mas ficou a música fantástica das montanhas da Estrela, lá onde a música se ouve, se vê e possui odor das flores silvestres e sabor de puro mel.
O acampamento realizou-se em dois momentos. Um, na zona da Senhora do Desterro, onde o canto do Rio Alba mais se conjugava com a alegria da nossa juventude. Outro foi na zona da Fonte dos Perus, ali de onde se avista a Torre que dá à Serra a dimensão dos dois mil metros. Pelo meio um raide nocturno a ligar os dois pontos. Aí a música do silêncio nocturno marcava o ritmo dos nossos passos, suportados pelos cajados, enquanto milhões de estrelas nos aplaudiam acompanhando-nos lá da abóbada celeste feita de breu de onde aqueles minúsculos luminares pareciam querer dialogar com as montanhas da Serra. Algures, já um pouco para além da Lagoa Comprida, e quando começava uma claridade a anunciar o Sol nascente, fez-se uma paragem para nos embrenharmos no estado matinal da montanha. Estendemos os olhos no silêncio e ouvimo-lo pautado por uma brisa a passar nas pontas da vegetação rasteira e que às vezes assobiava nos rochedos que se agigantavam na paisagem tocada pelo nosso olhar matinal. Foi então que o Sol despertou, primeiro envergonhado traço dourado e logo redondinho, trazendo a certeza de um novo dia. Batemos palmas, rezámos com fé a oração da manhã e cantámos a bom cantar saudando aquele imponente Astro vestido de ouro que assim também cantava para nós. Creio bem que nunca o Sol havia sido assim saudado com tal explosão de fé e entusiasmante alegria juvenil. Depois conversámos sobre os segredos que o Sol terá dito à Serra quando os seus raios a foram beijando com delicadeza e encanto.
As montanhas cantam e ensinam a rezar. Como o mar e o céu estrelado. Naquele instante, todos fomos poetas proféticos por um momento e hoje sinto empobrecida a juventude de agora que, nascendo e crescendo no espaço da intensa iluminação pública, nunca ouviu cantar a montanha abobadada por um céu de milhões de estrelas.
Só não sabe que as montanhas cantam quem nunca se embrenhou na cordilheira de um vale onde corre um regato de água de cristal a polir as pedras do leito ou nunca subiu ao píncaro de um monte nem assistiu à chegada da luz matinal ou nem sequer se dignou ouvir o queixume de uma folha seca em fim de vida quando pisada numa qualquer vereda depois de balançar em dança de encanto até repousar no chão.
As montanhas cantam canções de festas alegres, mas cantam também melodias tristes que evocam tragédias humanas. Porque também há cantos fúnebres na montanha. Se há! É deles que me lembro quando ouço estrondos traiçoeiros das armas de guerras de ontem e de hoje.
É um canto fúnebre aquele de que faz memória um romance que acabei de ler. Foi a primeira obra literária que li de Nguyen Phan Qué Mai, escritora vietnamita já famosa noutras paragens, mas que só agora entra no mundo das letras portuguesas com o romance “Quando as Montanhas Cantam” que é um canto fúnebre com um andamento sinfónico de esperança e paz. É também um andamento de solidariedade entre gerações conjugada com a espiritualidade familiar de cunho oriental que se respira desde o primeiro momento desta encantadora história que, sendo de ficção, dá-nos a realidade dos grandes acontecimentos que perpassam o Vietname ao longo do século vinte.
O romance atravessa as últimas décadas vividas pelo Vietname. É a saga de uma família cuja história se desenrola ao longo de um século. A abrir livro, a árvore genealógica da Família Trân, onde podemos situar, de imediato, as duas personagens principais da narrativa que são também as narradoras que vão intercalando as suas histórias, a avó, Diêu Lan, e a neta, Huong, que assim nos surgem numa página inicial: «A minha avó costumava dizer-me que, quando os nossos antepassados morrem, não se limitam a desaparecer, continuam antes a velar por nós. E agora, sinto-a a velar por mim enquanto acendo um fósforo, ateando o fogo a três paus de incenso. No altar ancestral, atrás do sino de madeira e dos pratos de comida a fumegar, os olhos da minha avó brilham enquanto uma chama azul-alaranjada brota, a consumir o incenso. Sacudo o incenso para apagar o fogo. Enquanto queima lentamente, cortinas de fumo e fragrância sobem em espiral em direção ao Céu, chamando os espíritos dos mortos a regressar.» É então que a neta parece ouvir o murmúrio da avó a dizer: «Os desafios enfrentados pelo povo vietnamita ao longo da História são tão grandes como as mais altas montanhas.»
A narrativa começa em 1972. A avó e a neta, refugiadas nas montanhas, observam Hanói a arder e, de regresso à cidade, descobrem que a sua casa se encontrava completamente destruída e decidem erguê-la de novo. É então que a avó, para consolar a pequena Huong, decide contar à neta a sua história de vida que é também uma sequência da História do Vietname: a ocupação francesa, a invasão japonesa, a chegada dos comunistas e a guerra. No meio, na ausência de recursos e aproveitando as circunstâncias que lhe pareciam mais propícias embora trágicas, a dura decisão de uma mãe ter de ir deixando pelo caminho os seis filhos, na esperança de um dia os poder recuperar.
Entretanto a guerra acaba e Huong pode voltar a abraçar a mãe. Os veteranos da frente começam a chegar. Entre eles o tio Dat que se faz acompanhar de uma escultura de madeira feita pelo falecido pai, esculpida para a filha e que Dat guarda, desde há anos, até poder entregá-la a Huong. É a escultura de uma ave, a que chamam “Son ca”, ou seja, “A Montanha Canta”. «Esta ave de madeira foi a minha companhia de viagem durante os últimos sete anos», diz Dat a Huong. E acrescenta: «Subiu inúmeras montanhas comigo, atravessou rios a nado, mergulhou em túneis subterrâneos e sobreviveu a bombas.»
O romance termina com um sentido fúnebre junto ao túmulo da avó, onde foi colocado o “Son ca”. «Volutas de fumo erguem-se para o alto. E, no rodopiar das cinzas, vejo o “Son ca” a mover-se. Bate as asas e estica o pescoço, lançando as canções da minha avó em direção ao Céu.»
O que acontece, então, “Quando as montanhas cantam”? “Quando as montanhas cantam”, nós, caminhantes da Estrela que as ouvimos cantar, não podemos deixar de cantar com elas e acompanhar as aves que as habitam. E rezar também, porque elas, como canta o Salmista, também ensinam a rezar.
É-me grato evocar este livro, tão fascinante como poético, numa altura em que se completa um ano da vinda à Guarda de uma embaixada de duas dúzias de vietnamitas a inaugurar um monumento de homenagem e agradecimento ao guardense Francisco de Pina pelo papel que ele desempenhou no longínquo século dezassete, como linguista e missionário católico. É graças a ele que os nomes dos membros desta original família aparecem escritos em caracteres latinos. Mas os tons são vietnamitas. Desse encontro de tons e caracteres latinos surge uma poderosa obra literária, escrita também para dar voz literária a um país que, para além de guerras e conflitos armados, possui uma cultura de mais de quatro mil anos e que ama muito a paz.
Guarda, 20 de Novembro de 2024
António Salvado Morgado
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