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Portugal e a Guarda e os doutores

Uma das características (incaracterísticas) de ser do nosso país é a deferência com que uns muitos tratam uns poucos, que são cada vez mais… A forma (em jeito, mas só em jeito, tantas vezes) de respeito para com o Outro- algo profundamente valorativo e garante de um viver em comunidade superlativo- torna-se, não raro, num exercício de fingimento e até ressabiamento, ou num lastimoso e pesaroso acto de assunção de uma inferioridade pretensa.

Falamos da maneira como a palavra “doutor” serve para estabelecer proximidades, intimidades e afinidades, que mais não são do que diferenças e distâncias e estatutos no relacionamento e no tratamento mais ou menos formal, mais ou menos informal: se alguns há que o fazem por verdadeiro respeito (e por tal nada a referir, embora pudesse ser alvo de análise), outros há que o fazem simplesmente (sem que seja nada simples) por querer agradar ao tal doutor e assim obter qualquer vantagem, nem que só a simpatia da conversa de circunstância, que serve também para demonstrar aos presentes e ouvintes que se tem conhecimentos e contactos de monta com pessoas renomadas, logo influentes (seja aqui a influência o que for).

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 Portanto num audível “o doutor isto, o doutor aquilo” estabelecem-se logo quatro (?!.) “camadas estatutárias”: em primeiro, o próprio do doutor- o mais reverente e nem sempre deferente; em segundo, o que o intitula- que por chegar à fala com vários que tais, se considera quase como um deles e disso faz tenção e menção de o demonstrar de bem viva voz; em terceiro, os que não conhecem o doutor- o que tanto desejariam, e se contentam por conhecer aquele que o conhece (é que nunca se sabe quando dele se pode precisar); em quarto, aqueles que não fazem caso- destes acasos costumeiros e desanimadores e por tal são, muitas vezes, vistos de soslaio e desaprovados pelos outros todos, quais seres estranhos e esquisitos.

É claro que na “classe dos doutores” também há particularidades: uns fazem questão de deixar bem vincado que tal epíteto não consta do seu nome, repetem-no uma e outra vez e ficam até incomodados; outros já se deixaram vencer pelo cansaço e desistiram de corrigir os interlocutores que não ligam meia a tal apelo (um doutor é um doutor, mesmo que o próprio não queira!); em terceiro (e teme-se que sejam consideravelmente bastantes) aqueles que fazem questão e gosto de serem assim nomeados e tratados, com altivez até. Em quarto os que “não sendo” doutores querem ser assim tratados… admirável mundo… velho.

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Neste tratamento relacional (às vezes sem relação nenhuma, ou pelo menos, substancial) também se utilizam o engenheiro, o professor, o arquitecto, etc., etc. e o efeito é o mesmo, embora doutor… seja sempre doutor. E mesmo aqueles que não atendem a estas cortesias vazias, de quando em vez, já se lhes ouvem tais palavras- tal é a “pressão comunicativa”!

Singularidades quase que portuguesas. Na Guarda são-no ainda de forma mais visível, ou pelo menos, parece. Conseguimos ser afirmativamente capazes em tanto; mas também conseguimos desembaraçadamente aprimorar inconsequências e aspectos medíocres, maldizentes, malfazentes… Haverá mesmo uma identidade do Ser guardense, mais própria, mais recôndita, mais imperscrutável… da do Ser português?

“Boas férias, doutor”. (ups!).                                      

Luís Filipe Soares

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