Não me sinto muito vocacionado para a criação de textos concernentes à vida política, sobretudo política do momento, até porque a conjuntura facilmente poderá ficar alterada.
Bastará, quantas vezes, a introdução de um novo factor para ela se reorganizar e assumir um novo rosto. E, para tal, porque a história não pára, o tempo é sempre muito breve. Brevíssimo, mesmo. Encontramo-nos a 14 de Março e, quando o jornal chegar aos leitores na próxima semana, o que escrevo, aqui e agora, poderá já não ter qualquer sentido. Mas, desta vez, atrevo-me a viajar por um caminho da grande contingência em que nos encontramos, sabendo que só a incerteza parece certa. Seja certa, então, a incerteza das minhas palavras que, atrevidamente, entram no espaço de política nebulosa.
A chamada psicologia da “gestalt” [ou da forma, na terminologia portuguesa] não se aplica só ao domínio das percepções sensoriais. As suas leis verificam-se também no âmbito das realidades sociais de toda a espécie. Também aí «a totalidade é mais do que a soma das partes». Aí também a introdução de um novo elemento pode alterar a compreensão da globalidade do conjunto, alterar o nosso entendimento compreensivo da totalidade e a sua realidade enquanto tal totalidade. Baste olhar para a composição da Assembleia da República que resultou das eleições de 10 de Março. A Assembleia da República é mais do que a soma dos partidos e mais do que a soma dos deputados. É, ou devia ser. Assim o entendam os nossos eleitos.
Num mundo incerto, nebuloso e perigoso, a nossa situação, neste extremo da Europa, é complexa e perplexos nos encontramos. Todos o reconhecem, mesmo aqueles que andam bem inteirados dos meandros da política. Os resultados das últimas eleições foram o elemento que veio dar nova configuração à vida política portuguesa que importará acordar de um sonambulismo democrático em que nos encontrávamos instalados. Com estrondo, parece termos acordado desse sonambulismo, mas parece que o chão nos vai fugindo e a realidade nos aparece em desequilíbrio.
Encontramo-nos perplexos perante a complexidade da situação política que resultou das eleições de 10 de Março e os meios de comunicação social não se têm poupado a referi-la de muitos modos e linguagens. Perplexidade frente aos resultados eleitorais e perplexidade perante a efervescência que se vai manifestando, particularmente naqueles que foram os principais perdedores que tanto pão foram dando aos grandes ganhadores e que pretendem agora, e desde já, dar sinal de vida antes que se vejam sem ar no redemoinho da sua perdição. Se um convida os seus tradicionais alinhados para uma reunião que pretenda unir as tropas para uma «oposição forte» aos vencedores, outro anuncia desde já uma moção de rejeição a um governo que nem sequer existe, ignorando completamente que, com tal, alimentam mais uma vez a indignação de quantos esperam verdadeira nobreza de espírito político que salvaguarde a energia democrática para a construção do bem comum e do bem de todos. Porque é aí que se encontra a política, de verdade. Parece continuar o jogo linguístico bem empobrecedor da oposição “nós e eles”, sempre muito acompanhado da díade “bem e mal”.
Desde os meses de campanha eleitoral e, particularmente, a partir do dia 10 de Março tenho andado na renovada companhia das principais obras do filósofo Daniel Innerarity (Bilbau, 1959), considerado um dos pensadores mais influentes na actualidade no quadro da filosofia política e social. Estando embora traduzidas para português, parece que elas vão passando à margem dos responsáveis directos pela vida política nacional. Sem atender à ordem temporal por que foram publicados, aqui deixo os seus títulos: «O Futuro e os seus Inimigos: Uma Defesa da Esperança Política»; «Uma Teoria da Democracia Complexa: Governar no Século XXI»; «O Novo Espaço Público»; «A Política em Tempos de Indignação»; «Política para Perplexos».
Quem não verá que estes títulos, só por si, parecem encaixar na atmosfera do nosso tempo pós-eleitoral em que os analistas e comentadores de serviço nos meios de comunicação social continuam a elaborar cenários para a complexa dispersão de eleitos na Assembleia da República e possibilidades de governabilidade do país? A partir deles, deixo para o leitor o desafio de agarrar nos conceitos que preenchem aqueles títulos e tentar pensá-los pessoalmente como se lhe pertencesse a responsabilidade de assumir os destinos do país.
Quem poderão ser os inimigos do futuro e como descortinar a seiva da esperança política? Como potenciar a democracia complexa e, neste nosso século, que papel nos cabe, a nós cidadãos, na vida social do país? Como nos situamos no espaço público cujo ar vamos respirando e quais são os seus principais agentes? Como será possível uma política que transforme a indignação de alguns e o protesto de muitos em política de esperança para todos? Se o estimado leitor se encontra tão perplexo que não encontra respostas, então «Política para Perplexos», essa singela síntese do pensamento de Daniel Innerarity, poderá dar uma ajuda. É também por aí que vou continuar.
Situo-me no corpo central da obra, a terceira parte, onde o filósofo analisa até que ponto continuam válidas algumas categorias tradicionais como, entre outras, as oposições binárias “nós e eles”, “o populismo e o antipopulismo”, “os homens e as mulheres”, “a direita e a esquerda”. É precisamente o capítulo 23 onde, com o título «Destros e canhotos», analisa esta última categoria binária do pensamento. Abre ela com estas palavras: «As categorias políticas não são imortais; nascem e morrem como os seres vivos. Têm momentos de esplendor em que desenvolvem toda a sua força explicativa, tornam o mundo compreensível e facilitam as nossas escolhas. Mas também se gastam, perdem a sua capacidade de orientação, confundem-nos mais do que nos esclarecem e podem mesmo converter-se em verdadeiras imposturas.» E logo, em novo parágrafo, continua o pensador e analista da realidade política: «Esta contingência rege também a vida, a transformação e até a possível morte de conceitos políticos como os de direita e esquerda.»
Leio e fico a interrogar-me sobre o que passa pela cabeça daqueles que, perante o resultado das eleições, continuam nesse esquematismo tecido de categorias incapazes de lerem a realidade complexa que exige entender uma série de possibilidades e de as virtualizar. Mas, para entender, é preciso querer desfazendo-se de velhos preconceitos que já não encaixam, se é que alguma vez encaixaram, na solução da problemática da realidade política actual. E aí ficam mais umas palavras de Daniel Innerarity para desassossego de quantos não conseguem pensar para além de fáceis dualismos: «Os assuntos políticos já não se dirimem com uma fórmula simples nem com enunciados disjuntivos. […] O futuro será de quem conceber adequadamente o misto, o complexo e a articulação do heterogéneo.»
Não há o puro bem nem o puro mal no mundo dos humanos que não são nem anjos nem bestas. Sempre o bem se mostra à mistura com algum mal, e sempre o mal se evidencia com a capa de algum bem. Não é fácil descortinar os melhores meios para os melhores bens, tanto na vida pessoal como na vida das comunidades humanas, mas a dificuldade costuma aguçar o engenho. E, na vida política, é nestes quadros que exigem soluções novas para problemas emergentes que se mostra o génio do estadista que, com diálogo, compromisso e visão da coisa pública, é capaz de congregar as virtualidades de todos sem “linhas vermelhas” nem “cordões sanitários” para ninguém de que tanto se abusou na campanha eleitoral.
Nestes «Tempos de Indignação», mostrando ao povo paciente e penitente quaresmal que possuem maturidade democrática, saibam os líderes partidários e cidadãos eleitos propiciar a «Defesa da Esperança Política» na atmosfera de «Democracia Complexa» em que, perplexos, nos encontramos.
Guarda, 14 de Março de 2024