Com a demora em reagir, as coisas vêm mais lentamente.
Assim acontece com estes textos, um pouco atrasados no tempo. Mas as memórias são sempre importantes, por isso não as podemos deixar cair no esquecimento. E em termos literários, não há lugar para a procrastinação e se não é num dia, é noutro devemos relembrar o que é importante para a memória dos povos e para o não deixar repetir aquilo que nunca devia ter acontecido. Assim este texto devia ter sido escrito no fim de maio, mas agora ainda é a tempo. Que não seja necessário voltarmos ao tempo das 3 Marias.
Maria Velho da Costa faleceu a 23 de maio, aos 81 anos. Nasceu em Lisboa, em 1938, e licenciou-se em Filologia Germânica pela Universidade de Lisboa. Foi leitora do King’s College em Londres, secretária-adjunta da Cultura (1979) presidente da Associação Portuguesa de Escritores e adida cultural em Cabo Verde (1988-1991). Segundo o nosso Eduardo Lourenço, inauguraria na escrita contemporânea uma poética romanesca original, fundada “na trama de uma escrita densa e plural, de um virtuosismo sem exemplo entre nós” (in O Canto do Signo). É considerada uma das vozes renovadoras da literatura portuguesa desde a década de 1960. Autora de contos e teatro é sobretudo no romance que se notabiliza com obras como Maina Mendes (1969), Casas Pardas (1977) e Myra (2008). Foi em Casas Pardas que iniciou um processo de escrita subversivo, implicando o leitor na construção / desconstrução do texto narrativo e interligando-o com o poético. A professora Universitária e crítica literária, Maria Alzira Seixo, fala de uma “dialética de construção cerrada e de abertura de sentido que o percurso do texto se estende, dividido entre a representação e a produção, ao mesmo tempo súmula do que pode ainda dar a forma romanesca tradicional e a abertura para as vias de uma atual forma do seu entendimento”. Literariamente, Maria Velho da Costa situa-se numa linha de experimentalismo linguístico destacando-se, no entanto, na sua geração de novelistas pelo virtuosismo único com que manuseia a língua, associando à transgressão formal uma forte relação dialógica com obras da tradição literária portuguesa desde a Idade Média até à contemporaneidade. Foi ainda uma das coautoras, juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, de Novas Cartas Portuguesas (1972), uma obra literária que denunciava a repressão e a censura do regime do Estado Novo. Exaltava igualmente a condição feminina e a liberdade de valores para as mulheres, e que valeu às três autoras um processo judicial, suspenso depois da revolução de 25 de Abril de 1974. Maria Teresa Horta recorda, a propósito da expectativa do trio em torno do livro, de Velho da Costa dizer: ”Se uma mulher sozinha faz este barulho todo, imagine-se o que farão três.”Dos muitos prémios literários, em 1997, foi distinguida com o Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, pelo conjunto da sua obra e, em 2002, recebeu o Prémio Camões. Do conto “Um amor de cão”:“ Myra atravessou os carris desocupados em direcção ao mar. Cresciam ervas e tojo nas juntas e as traves e ferros estavam negros das marés vivas sujas de crude. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca mais. Assoou-se à bainha da saia e limpou o resto da cara à manga do casaco de malha. Correu com os braços abertos, um sapato em cada mão, em direcção ao bando de gaivotas poisadas. Gritaram muito e revoaram iradas por cima da cabeça dela, mas não a atacaram. (…). Doíam-lhe as mãos e os braços de proteger a cabeça da última sova. Ficou na escuridão, até os olhos se habituarem às lâminas de luz das frinchas nas tábuas. Cheirava a salmoura, bafio, peixe estragado, cordame e óleo. Junto às paredes estavam ensarilhados ao alto os paus das barracas, panos de tela desbotada, redes com bóias de vidro, bidons pretos, latas, contentores de plástico esventrados, lixo da praia e do mar.”