Para onde vai a Língua Portuguesa?
A 20 de Julho de 2009, o Conselho de Ministros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) aprovou uma resolução pela qual instituiu o Dia da Língua e da Cultura Portuguesa na CPLP. Seria, conforme resolução, o dia 5 de Maio. A 25 de Novembro de 2019, a UNESCO, Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, elevou o 5 de Maio a Dia Mundial da Língua Portuguesa. Todos o vamos sabendo, porque todos o vivenciamos e o vamos ouvindo e lendo: as línguas são elemento constituinte das comunidades humanas e o alicerce das manifestações culturais. O seu papel é decisivo para expressar identidades, valores e visões do mundo. Exteriorização por excelência da diversidade cultural e das formas humanas de expressão, as línguas constituem-se como ponte entre as sociedades potenciando o diálogo, a interacção e a partilha entre os povos e as civilizações.É sabido que os organismos da ONU, com a instituição de dias mundiais ou internacionais, pretendem, em muitos casos, alertar as consciências para questões prementes da Humanidade como a erradicação da fome no mundo ou a situação dos refugiados e das vítimas da guerra. Outros dias possuem uma dimensão celebrativa. Será o caso do Dia Mundial da Juventude, da Amizade, da Felicidade ou da Poesia, por exemplo. Será em quadro de celebração que se situa a instituição do Dia Mundial da Língua Portuguesa. No próximo 5 de Maio de 2021, comemorar-se-á pela segunda vez. Mas haverá razões para celebrar? Parece que sim. De facto, é verdade que nos textos da CPLP e da UNESCO se encontram os fundamentos da decisão tomada, centrados em factos ou em convicções e esperança no futuro. A Língua Portuguesa, invoca-se, é falada nos cinco continentes por mais de 260 milhões de pessoas, equivalendo a mais de 3,7% da população mundial; é a língua oficial dos nove países da CPLM e de várias organizações internacionais como a União Europeia, a União Africana e o Mercosul (Mercado Comum do Sul); é a primeira língua da globalização e do encontro de civilizações da Era Moderna que deixou marcas em várias línguas do mundo; constitui um vínculo histórico e um património comum de muitos países resultante de convivência multissecular entre povos; é um meio de projecção internacional de valores culturais e fundamento de acção conjunta dos países que a falam; pode ser um factor importante para uma comunicação harmoniosa entre povos centrada num multilinguismo humano promotor da unidade na diversidade que, alimentando o diálogo, proporciona a tolerância, o respeito e a compreensão internacional. Se assim nos centrarmos na história feita ou no sonho fácil de outra história a viver, parece que não faltarão razões para celebrar o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Contudo, nos ares que pragmaticamente vamos respirando, pairam sinais que parecem contrariar afirmações tão categóricas. O entusiasmo das comemorações celebrativas não pode ocultar as sombras que escurecem os horizontes e de que é bem necessário tomarmos consciência, nós, os falantes, e as instituições que, de algum modo, a tutelam. Talvez não seja despicienda a radicalidade das perguntas: em que estado se encontra a Língua Portuguesa? Afinal, para onde vai a Língua Portuguesa com a sua riqueza lexical e exuberância gramatical de sentido? Não estaremos a empobrecê-la e a deformá-la por incúria, facilitismo e irresponsabilidade de todos nós e, particularmente, de quem a deveria cuidar?Nos idos tempos da minha infância jogava-se futebol com uma pequena bola de borracha ou mesmo de trapos e balizas marcadas com pedras. Eram os recursos possíveis na aldeia perdida na Beira. Mas nós, miúdos que estávamos muito longe de ouvir falar inglês, curiosamente utilizávamos termos ingleses, ouvidos presumivelmente nos cruzamentos futebolísticos de incógnitos entusiastas. Embora ignorando as grafias, falávamos do “keeper”, do “back”, do “corner”, do “offside” e do “penalty”. Actualmente, exceptuando o caso do “penalty” que se aportuguesou também para “penálti”, já ninguém usará entre nós aquela terminologia inglesa que veio arrastada pela força da criação do “foot-ball” que, como noutros desportos, também se aportuguesou para “futebol”. Embora outros termos de origem inglesa, como “play off”, “hat trick” ou “derby” e outros, se mantenham em uso no mundo desportivo, não deixará de ser verdade que a Língua Portuguesa conseguiu engendrar, no seu seio e em tempo adequado, terminologia própria: “guarda-redes”, “defesa”, “pontapé de canto”, “fora-de-jogo”, “grande penalidade”. Todos sabemos que se tem vindo a introduzir, nos discursos falados e escritos, noticiosos e de opinião, uma enorme quantidade de termos estrangeiros, sobretudo ingleses. Numa pesquisa de uma semana encontrei mais de uma centena nos jornais que costumo ler, e isto não contando com a terminologia do mundo das novas tecnologias, já bem vulgarizada. Sem qualquer caracterização, apontam-se alguns exemplos: “brunch”, “bullying”, “burnout”, “comeback”, “coworking”, “country manager”, “court”, “dark kitchen”, “delivery”, “fact checking”, “fast-food”, “ranking”, “learnability”, “selfie”, “take-away”, “layoff”, “t-shirt”, “timing”, “voucher”. Precisa o leitor de um dicionário? Também eu já necessitei dele algumas vezes.É verdade que as línguas não são estáticas e estão sujeitas – ainda bem – a contínuas transformações, resultado de múltiplas influências, incluindo a de outras línguas. Obviamente, a Língua Portuguesa não é uma ilha que pode escapar à internacionalização do Inglês e à globalização do tempo presente, materializado nas novas tecnologias, no mundo financeiro e empresarial, na indústria, no comércio, no turismo. Enfim, na comunicação e mobilidade globais dos tempos por nós vividos. Mas uma coisa é o natural e necessário dinamismo linguístico com a emergência de novas realidades numa comunidade sempre em mudança, outra a desvirtuação de uma língua decorrente da incúria dos cidadãos falantes e da omissão ou acção inconsequente das instituições políticas e educativas. Será tão difícil utilizar «grupo de missão» em vez de “task force”, como os responsáveis institucionais nos ensinaram recentemente a dizer, incluindo governantes? «Espaço aberto» em vez de “open space”, como agora de ouve? «Átrio», «entrada» ou «átrio de entrada» em vez de “hall”, como sistematicamente se utiliza? “Estudo de casos” em vez de “casestudy”, como se vai encontrando por aí? E os “fake news”, que pululam à solta pelo mundo, não poderiam ser «notícias falsas»? E o “lobby”, tão frequentemente utilizado e tão disseminado nas nossas sociedades, não poderia ser «grupo de pressão»? E o “hobby” com que nos vamos entretendo nas horas vagas, não poderia ser «passatempo»? E por que razão empregar “background” quando a Língua Portuguesa possui tantos termos equivalentes – fundo, experiência, educação, plano ou pano de fundo, conhecimentos, etc., – que podem ser utilizados em conformidade com as circunstâncias e contextos? Será uma questão de estilo? E por que razão utilizar “lifestyle” quando temos a expressão «estilo de vida»? Até parece que o «estilo» se envergonha da língua de Camões, de Vieira, de Eça ou de Pessoa e de tantos outros.Se há razões para celebrar o dia da nossa língua, que há, também não faltam para a necessidade de tomarmos consciência da direcção que ela vai assumindo. Hoje ficámos pelos anglicismos. Não lembrando sequer o «festival da canção», haverá outras esferas da vida dos falantes que nos deveriam manter em constante alerta. Seja também o Dia Mundial da Língua Portuguesa a despertar consciências para a situação que lhe vamos criando.Guarda, 15 de Abril de 2021.