Pontos de Vista
Têm sido ricos em acontecimentos os dias da última quinzena. Começaria, atenta a sua irrelevância e mau exemplo, pelo lamentável episódio das bofetadas prometidas, com insultos à mistura, por João Soares a dois colunistas do “Público”. Sintomático acerca da qualidade (ou da falta dela) da personagem, passou directamente para o anedotário desta República. Não gastemos mais tempo ou espaço com ele. Felizmente, foi rapidamente, e segundo se diz, bem, substituído por um homem de cultura e boas maneiras, o Embaixador Luís Castro Mendes.
Passando para assuntos mais sérios, recorde-se a sentença condenatória dos 17 activistas angolanos, classificada pelo Advogado Teixeira da Mota como “juridicamente repugnante” mas “politicamente eficaz”. Os jovens activistas foram condenados pelo acto de “pensar” a penas de prisão, entre os dois e os oitos anos e meio de cadeia, sendo-lhes atribuída a prática dos crimes de “actos preparatórios de rebelião” e de “associação de malfeitores”. Dir-se-á, quanto à acusação por “associação de malfeitores”, que a mesma foi deduzida nas alegações finais, ou seja, numa fase processual de todo extemporânea, sendo violadora dos direitos de defesa e constituindo um expediente usado, à falta de fundamentos de prova, para lograr uma condenação em penas de privação da liberdade. Atente-se ainda nas desumanas condições de encarceramento nos estabelecimentos prisionais pelos quais os jovens foram distribuídos. A pormenorizada reportagem publicada pelo jornal “Público” no domingo, dia 10 do corrente (“há cadeias com ratazanas, sanitas sem água e em nenhuma se dá o básico: água potável”), é arrepiante e devia fazer corar de vergonha os políticos que continuam, por alinhamento ideológico com a autocracia angolana ou por alegadas razões de interesse público, a querer branquear as violações do regime de Luanda contra os direitos humanos.
A evolução do caso “Lavajato” e a teia interminável de actos de corrupção que lhe estão associados, o desaforo e a desvergonha das organizações e das principais figuras políticas brasileiras e, agora, o alastramento dos ressentimentos resultantes da evolução do processo de destituição (impeachment)) da Presidente Dilma, continuam a colocar os países do mundo lusíada na primeira fila das más práticas de governação em todo o mundo. Triste medalha e lamentável cartão de visita! Mas, também neste caso, a extrema-esquerda nacional continua a exibir a sua flagrante dualidade de critérios: em relação à direita, esgotam os adjectivos de indignação e antecipam juízos definitivos antes da pronúncia judicial; mas, quando as suspeitas recaem sobre a esquerda (como é o caso do PT, no Brasil), a maior culpa é da «politização da Justiça», que quer consumar um “golpe”.
É certo que também por cá se multiplicam acções judiciárias e policiais contra instituições que deveriam estar acima de suspeita – a Polícia Judiciária e a Autoridade Tributária – com detenções de agentes e outros responsáveis e a tentativa de desmantelamento de redes e suas conexões. São mais sinais de uma doença social que alastra e se ramifica, mas, por outro lado, são medidas salutares que servem para limpar os ares…!
Porém, o grande acontecimento mediático dos últimos dias consistiu na revelação do caso conhecido por Panama Papers, uma gigantesca fuga de informação sobre uma parte (apenas uma parte) desse submundo tenebroso das sociedades offshores, que está a ser investigada por uma rede internacional de jornalistas – o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, na sigla em inglês). No acervo de 11,5 milhões de ficheiros já foram identificados mais de 240 cidadãos portugueses ou com residência em Portugal, envolvidos em empresas offshores, criadas por uma sociedade de advogados no Panamá, a “Mossack Fonseca”. Nesse acervo dos “Panama Papers” existem quase 100 documentos directamente relacionados com a ES Entreprises, a empresa mais misteriosa do Grupo Espírito Santo (GES), mantida em segredo durante mais de vinte anos, que o Ministério Público (MP) suspeita tratar-se de um gigantesco saco azul.
Os objectivos visados pelas pessoas, físicas ou colectivas, que colocam avultadas somas de dinheiro em offshores, bem como a ocultação das suas identidades ou a proveniência desses fundos, poderão ser relativamente toleráveis – caso da ocultação do património por razões pessoais ou familiares – ou, ao invés, mais ou menos ilícitos – desde a fuga ao fisco e a lavagem de dinheiro ou branqueamento de capitais, à prática de burlas, actos de corrupção ou financiamento do terrorismo, tráfico de pessoas, droga ou armas.
O objectivo mais benigno, embora social ou eticamente censurável, consiste na sujeição a regimes fiscais privilegiados porque esses paraísos fiscais são zonas de baixa tributação. Mas as offshores podem ser também caracterizadas por uma total opacidade, prestando-se então à ocultação da origem do dinheiro e ao anonimato dos seus verdadeiros donos ou beneficiários mediante a utilização de “directores nomeados”, vulgo, “testas de ferro”. Diz o “Público” de 5 de Abril que, “quando se trata de offshores, a fronteira entre o legal e o ilegal, entre o lícito e o ilícito, entre o moral e o imoral, é muito ténue. É por isso que, de repente, aparecem no mesmo (…) ficheiro informático republicanos, monarcas, traficantes de droga, músicos, ditadores, desportistas, artistas, corruptos e até gente bem-intencionada”.
Uma das modalidades de mais grave e danosa utilização das offshores é a que envolve “pessoas politicamente expostas”, isto é, indivíduos que ocupam um cargo público proeminente ou um seu familiar ou pessoa próxima. No léxico da indústria de serviços financeiros utiliza-se essa expressão para aludir a um cliente que apresenta um risco acrescido para a empresa pela possibilidade de, se envolvido em casos de corrupção, provocar um maior impacto mediático. Vejam-se, nesta perspectiva, as conexões de políticos brasileiros ligados ao escândalo do “Lavajato” com os “Panama Papers”. Bem como, na pós-divulgação dos “papéis do Panamá”, se pode observar que Putin nem sequer abanou. Nem ele nem nenhum dos líderes de países autocráticos. Quem mais tremeu foi David Cameron e quem caiu mesmo foi o primeiro-ministro islandês. E não é difícil perceber porquê…
Mas… e nós, os “não politicamente expostos”, os comuns mortais? Nós continuamos uns otários que, um belo dia, descortinámos essas fétidas redes de interesses que aproveitam a alguns avantajados enquanto os muitos vão esgravatando na vida o sustento de cada dia… Até dá para rir!