Na sua habitual coluna, na última página do Público de hoje, dia 23 de setembro, João Miguel Tavares questiona: “A noite de 26 de Abril de 2023 vai ser apagada da História”?
É que, como titula o EXPRESSO de 22 de setembro, na última página do caderno principal, “151 dias depois, o caso Galamba está parado”
Ainda se lembram do “caso Galamba” ou já se esqueceram do que aconteceu?
Para a recuperação de antecedentes daquele que ficou conhecido como um dos escândalos recentes da gestão da TAP e para maior facilidade minha e maior proveito dos meus leitores, vou dar a palavra a António Barreto.
No “Público” de 8 de julho passado, o conhecido intelectual de raiz ideológica socialista, escreveu o seguinte: “Chega ao fim uma das mais infames operações que a democracia portuguesa proporcionou. Ou patrocinou. A comissão parlamentar de inquérito foi autora de gesto inédito ao transformar em herói o autor do mais flagrante abuso de poder que se conhece na história recente. O ministro (Pedro Nuno Santos) que decidiu, individualmente, onde ficaria o futuro aeroporto de Lisboa foi condenado e censurado, demitiu-se, foi perdoado e readmitido, para voltar a ser demitido por se ter envolvido em nova aventura inconsequente”.
E prossegue: “Por causa da TAP, do aeroporto, dos caminhos-de-ferro e dos transportes urbanos ficámos a saber que é aceitável que o Governo, desde que tenha maioria, interfira nas empresas, nomeie e demita, substitua e exonere, indemnize e recompense quem entender, quando quiser e como pretender”. O autor salienta que os trabalhos da comissão de inquérito à TAP, e sobretudo o seu projeto de relatório final, então em vias de aprovação, iriam deixar marcas muito sérias e muito negativas no regime político português. O mal que se fez veio para ficar. “O Parlamento concede ao Governo licença para agir, fazer o que entender, ocultar, mentir, disfarçar e abusar do poder. Numa expressão consagrada, licença para matar”.
Neste país, chamado Portugal, confirma-se que “a função do deputado é a de votar o que o seu grupo entende. É este aprovar o que pretende o partido. E este último o que deseja o Governo. É uma regra de três muito simples”.
“Considera-se normal que os governantes possam mentir, ocultar e mudar a versão dos acontecimentos, sem sofrer as consequências”.
Na “impetuosa noite de 26 de abril de 2023”, ocorreram extraordinários acontecimentos no Ministério das Infra-Estruturas, envolvendo assessores, vários ministros, um computador, a PSP, o SIS e a PJ, além de uma bicicleta.
Os acontecimentos foram de tal maneira extraordinários que, num País a sério teria gerado a demissão, no mínimo, do ministro da pasta – o não menos extraordinário João Galamba. Ou, se o primeiro-ministro, num arroubo de autoritarismo ou, no mínimo, de marcação de terreno, se opusesse à intenção presidencial, deveria o Presidente da República fixar-lhe diretivas sobre o modus faciendi, dentro de um prazo necessariamente curto para a solução do caso. Por outras palavras o primeiro magistrado da Nação deveria exibir ao todo poderoso Primeiro-Ministro um ultimato para apresentar, em prazo, o pedido de demissão do ministro infrator.
Não se limitar a ameaçar com uma maior vigilância – que se viria a mostrar ineficaz- e que daria pretexto ao Dr. António Costa de reforçar a sua imagem de “grande chefe” ou “senhor disto tudo”. O Presidente, com o seu habitual estilo de pudente temor, viu acumularem-se os vexames e as desconsiderações oriundas do chefe do Governo. Continuou a fazer de conta de que era a primeira figura do regime, no desenho constitucional em vigor. Mas ninguém já o leva a sério. Ao contrário do que anunciou ao País, o Professor Rebelo de Sousa é que é hoje um PR sob vigilante tutela. Aprendeu a lição de, de uma vez por todas, acabar com as ameaças de dissolução da A.R. e de limitar as suas críticas, ao menos nos assuntos mais relevantes. Na reunião do Conselho de Estado, em duas sessões, foi novamente vexado pelo Primeiro-Ministro, que fez o que quis, sem qualquer atenção pela figura presidencial. Que se saiba nem sequer tem ousado questionar o Dr. António Costa sobre o Ministro Galamba e o incumprimento da promessa por este deixada quanto ao prazo de conclusão da Linha ferroviária da Beira Alta. E também não se atreve a perguntar pelo estado em que se encontram as investigações aos acontecimentos da noite de 26 de abril… Não lhe pesará na consciência a anuência que deu à substituição da Procuradora-Geral da República? Estará satisfeito com o status quo em que a Justiça se encontra?
Quanto ao seu papel no dossier “Habitação”, o País olha espantado e já não se surpreende com as consequências deste peculiar estilo presidencial, feito de passividade e de temor.
Recordemos de novo as palavras de António Barreto: “Considera-se normal que os governantes possam mentir, ocultar e mudar a versão dos acontecimentos, sem sofrer as consequências. (…) Admite-se que os governantes sejam capazes de, sem penalização ou crítica, fazer favores a gente do seu partido, conceder privilégios, indemnizar amigos e recompensar quem os ajuda, tudo isto sem fiscalização. Confirma-se que o Governo pode retirar da esfera do Tribunal de Contas todos os assuntos e negócios que lhe interessem ou que o incomodem”.
O Governo tem cada vez mais licença para gastar, despedir, emprestar, dar e ocultar. “Até chamar a polícia. E os serviços secretos. Na defesa dos seus, Governo e grupo parlamentar unem-se para lá da fronteira da democracia e da legitimidade”. Tenho na retina a figura de muitos deputados do PS, rostos felizes da vida, repletos de auto satisfação ainda que vazios de ideias numa mudez ambiciosa, sonhando com amanhãs cheios de promoções.
É evidente que, para isto contribui a maioria absoluta. Mas, como observa António Barreto, “o que verdadeiramente está em causa é o conceito de deputado ou a essência do voto. Os procedimentos autoritários específicos desta operação da TAP são tão possíveis com maioria absoluta de um partido como com os votos de dois ou de coligação. Se os direitos e os deveres do deputado, perante o seu eleitorado, são os que hoje existem, é indiferente haver maioria de um ou de dois partidos. Só a liberdade dos deputados faria a diferença”.
Tendo por trás um Governo competente e sério, confiável e credível, sem derivas constantes entre nacionalização e privatização, sem rumo nem acerto.
Lisboa, 23 de setembro de 2023