Pontos de Vista
Para apreciação da segunda década do século XXI, que ora acabou, quase apetece dizer que “para cada gosto, seu paladar”, tudo dependendo da ideologia e das simpatias partidárias do analista ou do maior otimismo ou pessimismo de quem opina.
Desde considerá-la, como João Miguel Tavares como “a melhor década de sempre” (Público, de 26 de Dezembro), ou, segundo Rui Tavares como “uma década perigosa” (Público, 27 de Dezembro), as análises e os qualificativos vão variando ao sabor de quem comenta.
O primeiro – bem como as fontes que ele acompanha -, sublinha que “estamos a assistir à mais impressionante melhoria das condições de vida da História da Humanidade: a pobreza extrema caiu pela primeira vez abaixo dos 10% da população mundial[…]; o facto do crescimento económico na Ásia e na África superar o da Europa e da América do Norte está a fazer diminuir a desigualdade a nível global; a mortalidade infantil mergulhou para mínimos históricos à medida que doenças como a malária ou a poliomielite entraram em declínio; a fome severa praticamente desapareceu”. Já o historiador Rui Tavares escreve que a década ora encerrada deve ser considerada uma década perigosa, razão por que não concorda com o diagnóstico otimista do jornalista João Miguel Tavares, com quem alterna diariamente na última página do “Público”. E acrescenta que só ao entendermos como a nossa década foi perigosa poderemos ter um plano para que a próxima não seja uma “desgraça”. Acompanhemo-lo por instantes na sua argumentação: “Onde a nossa década foi perigosa foi na regressão democrática, no colapso do Estado de direito, no regresso do nacional-populismo, no crescer da intolerância e da polarização destrutiva”. Como testemunhos exemplares deste retrocesso democrático, refere os nomes do líder autoritário húngaro Viktor Orbán (um dos seus ódios de estimação) bem como os de Trump e Bolsonaro, de quem Orbán foi precursor.
Parece-me evidente que ambos têm razão: só o enfoque é que é diferente. O primeiro acentuou o desenvolvimento tecnológico, científico, cultural e económico das sociedades de hoje em dia; o segundo sublinhou o défice político e democrático ocorrido em certos países do mundo. Poderia mesmo acrescentar muitos outros à lista, que, trilhando caminhos radicais de direita, mas também de esquerda, são fatores de perturbação e de grande preocupação para o futuro próximo que todos desejamos melhor.
Pensemos no caso português. No início da década, vivíamos a parte terminal do infausto (segundo) mandato da governação de Sócrates. Atrevo-me até a pensar que talvez fosse possível alcançar um quase consenso nacional na comparação entre 2011 e 2019, ou seja entre o princípio e o fim da década. Penso não errar ao dizer que a grande maioria dos portugueses entenderá que estamos melhor hoje do que nas vésperas da chegada da troika em consequência dos desvarios despesistas e gestionários dos governos “socráticos”. Creio que, salvo alguns saudosistas mais ou menos interesseiros, ninguém teria vontade de regressar a esse período de mau viver e de pior exemplo. Atrever-me-ia a assegurar que o próprio ministro Augusto Santos Silva que foi figura de proa nesses governos, como continua a sê-lo nos de António Costa, não terá, quanto a tal cotejo, opinião diversa, apesar das recentes declarações desastradamente críticas à gestão da maioria dos nossos empresários (triste forma de dar nas vistas para um Ministro dos “Negócios” Estrangeiros …).
A superior qualidade da segunda parte desta década resulta ainda da muito maior popularidade do atual Presidente da República em comparação com Cavaco Silva. Neste ponto, diria que, com a provável exceção dos apoiantes da direita mais radical (simpatizantes do Chega!, mas não só), os demais portugueses preferem o estilo mais afetivo e próximo de Marcelo. O que não significa que uma boa parte da intelectualidade portuguesa da direita à esquerda não esteja longe de se deixar encantar com o sedutor estilo de intervenção do PR. Ouçam-se por exemplo os repetidos “elogios“ de José Miguel Júdice: com um inevitável cheirinho de cicuta, levam o apreciado comentarista de “CAUSAS” a qualificar de “perversa” (sic) a “superior” inteligência de Marcelo. Será que Júdice pretende nisso parafrasear Chico Buarque segundo o qual “existe mesmo um misterioso elo entre compaixão e perversidade (in “Essa Gente”, 2019, Companhia das Letras, pág. 20)? (e que tudo não passe de… literatura?)
De qualquer modo, “perversa” ou “compassiva”, a larga maioria dos portugueses deseja que o novo ano traga o anúncio da recandidatura de Marcelo à Presidência. Se irá ultrapassar a desejada fasquia (de 70,35%) da reeleição de Mário Soares, já me parece algo duvidoso, mesmo que o PS não apresente candidato próprio. É que os seus apoiantes da esquerda radical não deixarão de se fazer representar por candidatos porventura fortes e ambiciosos E se, à direita extrema, o Chega! vier a candidatar o deputado André Ventura e se a ala esquerda do PS preferir o candidato do Bloco a votar em Marcelo, a empreitada, embora possível, será difícil.
Para a recomposição do centro e da direita serão essenciais as eleições internas no PSD e no CDS, ambos em grave crise, embora mais grave no caso do CDS que se encontra, com candidatos a meu ver, fracos, em estado próximo do comatoso.
Confesso que não vislumbro uma solução de liderança para o CDS que possa evitar o esvaziamento do que resta do partido, com o seu eleitorado que resiste a ser sugado pelo Chega! e pela Aliança Liberal. A este fenómeno, embora com consequências muito mais limitadas, poderá não ficar imune o próprio PSD, que tem vindo a trilhar um triste caminho de fragmentação, gerador de pessimismo nas suas hostes.
Rui Rio revelou-se negativamente na escolha dos seus colaboradores mais próximos e na relação com a anterior bancada parlamentar. O seu ponto forte reside na imagem natural, séria e descomprometida que revela nas entrevistas e nos debates. Luís Montenegro representa a rutura com a linha de Rio, mais à direita, na esteira de Pedro Passos Coelho, mas sem a natural politesse do anterior líder. Quanto a Miguel Pinto Luz, tem algo de novato articulado e com ambições mas a precisar de afinar a imagem… E aí teremos, fidelissimamente atento ao decorrer das operações, o nosso PR Marcelo, que, entretanto, continuará a passear de braço dado com António Costa, para evitar instabilidade política e burburinho social. O sempre nosso pai dos pobres e dos… aflitos!
Mas a soar mais alto, levanta-se hoje a voz de quantos, aqui e pelo mundo fora, apelam a que seja dada a máxima prioridade à luta em defesa do ambiente e à regularização das condições climáticas. Os horrorosos incêndios na Austrália, que se prolongam há vários meses e as terríveis inundações na Indonésia que devastaram Jacarta, aí estão a reclamar a atenção de todos os cidadãos do mundo. A globalização não vale só para o bem e para o progresso – é também um irrecusável dever de solidariedade e socorro!
Lisboa, 2 de Janeiro de 2020