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ORAR POR NÓS

Histórias que a Vida Conta

Fiz a 1ª Comunhão e a Comunhão Solene em conjunto, por volta dos meus 11 anos. Meus Pais entendiam – e bem – que a transcendência do acto, ainda que sempre só parcialmente absorvida, requeria uma maturidade etária tanto quanto possível compatível. Segui por isso aplicadamente a catequese facultada na minha paróquia e “ministrada” pela saudosa D. Alice “Pequena”, assim alcunhada pela miudagem por ser muito baixinha (e porque as crianças são por vezes bem cruéis…). Provavelmente por ser à data já crescidinha, recordo ainda hoje com razoável fidelidade os ensinamentos então recolhidos. E retive, creio que para sempre, a lição sobre a Oração em que a D. Alice Pequena nos espantou com a seguinte veemente recomendação: “As meninas devem saber rezar com as mãos…”. Logo pensei que ela estava a evocar a postura canónica de orar com as mãos postas, tal como aparecia nas pagelas que metiam anjinhos e os Pastorinhos de Fátima… Mas D. Alice logo esclareceu: ”Rezar é também trabalhar com as nossas mãos, quando fazemos muito bem feitinho e com muito boa vontade os nossos trabalhos de casa, a costura, o ajudar a mãe na cozinha, o levar os manos mais novos pela mão para não caírem…” E logo um perguntou: ”E também jogar “ao mata”?”. “Também jogar “ao mata”, pois claro! porque isso é estar bem na escola…” E comparava: “Tudo o que for trabalho feito com cuidado e com caridade é assim como rezar avé-marias e pai-nossos que Nosso Senhor ouve, porque Jesus foi carpinteiro e Nossa Senhora era dona-de-casa. O trabalho assim é Oração e o descanso, depois dele, é santidade”.
Vem esta evocação a propósito de uma história triste que um destes dias a Vida me contou: as Monjas Dominicanas do Mosteiro do Lumiar transferiram-se para Fátima este último fim-de-semana. Eram minhas vizinhas há 40 anos, e de clausura. Esta resolução, nascida da necessidade de garantir às três Irmãs que restavam do grupo inicial, uma segurança de vida que já aqui lhes ia faltando, veio acordar uma vez mais a pergunta que sempre se levanta quando se fala em “clausura” – considerada por muitos como “uma opção de vida anacrónica e inadequada, com um carácter feudal, um modelo ilegível e pouco operativo no confronto com a realidade”1: “Para que servem, hoje, estas opções monásticas que parecem perseguir uma utopia, a contra-Tempo e contra-Mundo?” e, mais basicamente: “De quê e para o que é que vivem estas “divorciadas” do Mundo?” Pois da sua horta e do seu trabalho. Dos bolos e compotas, dos livros e dos ícones, que vendiam, no caso das Monjas do Mosteiro de Santa Maria. O para quê traduzia-se na Oração (nascida do trabalho das suas mãos como do recolhimento dos seus corações dedicados e da liturgia de excelência que a todos acolhia e celebrava religiosamente a beleza dos símbolos e da linguagem) e, dando passo a uma ousadia autorizada, também na organização, todos os segundos sábados, no que chamaram “Salão do Quintal”, de conferências dirigidas a crentes e a não crentes em busca dum espaço de meditação e de troca de ideias a várias vozes. Por elas passaram teólogos, historiadores, poetas, actores, psiquiatras, dirigindo-se livremente a “todos os anónimos buscadores de Deus”.
Foram, com a sua capelinha duma sobriedade tecida de luz e paz, onde se rezava mas, sobretudo, onde apetecia estar, de alma quieta e coração aberto; com o seu jardim cuidado e estimado como o mais precioso adereço do Paraíso; com o seu pequeno bosque amortecendo caridosamente o ruído herético da cidade, um coração benévolo batendo, seguro e santo, por todos nós
Mais antiga é a voz de uma outra história, de uma outra vida, que a Vida me contou, louvando, e que, num certo a propósito, me apraz lembrar e trazer até vós. A de uma conterrânea nossa, irmã de um tio de meu marido, a Irmã Teresa do Menino Jesus, nome que tomou quando professou nas Irmãs Clarissas, então recolhidas, (em clausura também), no Convento do Louriçal. Eis o resumo da sua vida feito pela sua sobrinha Maria da Conceição Fragoso Almodôvar que, mais e melhor do que eu, acompanhou o seu percurso de vida. Permito-me adiantar que não se tratou de uma fuga a qualquer destino imaginado infeliz ou acanhado ou consequência de qualquer amor desfeito… Foi, como se verá, toda uma vida vivida em diálogo com o Transcendente, discreto mas pródigo em frutos:

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“A tia Joaquina Fragoso Marques de seu nome completo, nasceu em Cortiçô da Serra, por volta de 1900, e ingressou no Convento das Clarissas com 27 anos. Tinha tirado o curso do Magistério Primário e dava aulas. Estava noiva, mas no dia da oficialização do noivado, devolveu o anel ao seu pretendente entregando-lhe ao mesmo tempo um crucifixo. Nunca ninguém me soube explicar o que se passou para dar uma volta tão completa à sua vida. Uma irmã mais nova falava dum “ apelo “ a que não foi capaz de resistir, mas nada mais adiantava. Foi um mistério que nos ficou a todos para toda a vida…Foi Superiora da Ordem até morrer e ainda hoje é lembrada e tratada como se estivesse quase presente. Só voltou a sair do convento com uma autorização especial para estar presente no funeral da sua Mãe, minha Avó Maria de Jesus.
Anos mais tarde meteu-se na grande aventura da construção dum novo convento em Monte Real, uma vez que o do Louriçal não tinha as mínimas condições. Algumas irmãs chegaram mesmo a tuberculizar. Como ela própria dizia, foi tudo feito pela graça de Deus, porque dinheiro não havia. Enfim, a Fé move montanhas e, pelos vistos, também vontades, que se conjugaram para levar a bom termo uma obra de tal monta. Quando aquela ”aventura” ficou concluída, fez-se uma inauguração solene onde toda a família esteve presente e foi das poucas vezes que a vimos ao pé.  Ela estava louca de alegria. Dizia a todo o momento que agora nunca mais voltaria a largar aquela casa. Assim aconteceu. Ali morreu com 75 anos de idade, ali está sepultada, como era seu desejo expresso. A título de curiosidade, e pela mensagem que contém, gosto sempre de referir a carta que ela escreveu ao meu Pai quando foi nomeado Governador Civil de Beja. Dizia-lhe assim:” António, se te nomearam para um cargo de mandar, é sinal que sabes obedecer”. Nunca mais me esqueci disto”.

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Que mais dizer destas irmãs especiais que escolheram, para melhor guardar os mistérios e os desígnios de Deus, celebrar o Seu amor de modo invisível e constante, tão completamente fora do Mundo?
Fora do Mundo sim, mas não esquecido dele. No círculo fechado dum claustro, no silêncio consagrado, no retiro consentido, no trabalho anónimo das suas mãos obreiras, no traçado tão recatado das suas vontades, com a teia benévola da sua dedicação e das suas preces, estas mulheres foram e são, como tantas outras suas irmãs, pela Oração e pela Obediência esclarecida, sustentáculo da fé, da esperança, dos anseios de paz, das promessas de conversão de tantos de nós.
O seu “A-Deus!” ao Mundo, não é uma despedida – é apenas a entrega confiante que dele fazem ao Senhor da sua crença.
11 de Março, Quaresma de 2019

(Footnotes)
1 Tolentino de Mendonça, O Sabor de Deus, Revista EXPRESSO, 2.03. 2019

 

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