O repouso do velho guerreiro

José Augusto Garcia Marques
(Juiz Conselheiro do STJ – Jubilado)

O debate entre Joe Biden e Donald Trump, realizado em 27 de junho, em Atlanta, foi desastroso para o candidato do Partido democrata. Na verdade, a performance do Presidente norte-americano foi uma sucessão de frases incompreensíveis, denotando uma presença extremamente frágil, física e mentalmente. Quando Trump, solicitado a responder a Biden, afirmou o seguinte: “não percebi o que ele disse e creio bem que ele também não”, embora o tenha feito com a sua habitual deselegância e brutalidade, a verdade é que tinha razão. Custa-me reconhecê-lo mas a argumentação do Presidente foi ininteligível. O debate suscitou um clamor de pânico entre os democratas. Grandes figuras do partido encabeçaram o movimento do abandono, sob pena de estarem a entregar a vitória de mão beijada aos republicanos, que iriam infligir uma derrota humilhante aos democratas. Desde logo se levantou a vaga, que não mais parou de crescer, do pedido para que Biden desistisse da campanha. Mas o velho Senhor, com cinco décadas de serviço público ao mais alto nível, recusou-se a fazê-lo ou a admitir a sua debilidade física ou mental. Porém, a mesma era tão real que, poucos dias depois, ao dirigir-se ao Presidente Zelensky, na Casa Branca, o tratou por “Presidente Putin” e, referindo-se à Vice-Presidente Kamala Harris, a confundiu com o seu rival Donald Trump.
Contudo, Biden teimava. Ainda admitiu que, se lhe fosse diagnosticada uma doença grave, aceitaria rever a sua posição. Entretanto, foi atacado pela Covid, num contexto em que Trump atingia o máximo da sua popularidade sobrevivendo a um atentado contra a sua vida, com uma simples beliscadura na parte superior do lóbulo da orelha direita, a que reagiu de forma verdadeiramente espetacular. Com o rosto coberto de sangue, ergueu-se de imediato, e empurrando os seguranças que tentavam freneticamente cobri-lo, erguendo punho fechado, gritou, em jeito de ordem extrema: Fight, fight, fight (lutem, lutem, lutem”).
Dir-se-ia que as eleições tinham ficado decididas naquela hora dramática. De um lado, um candidato velho e exausto; do outro, um “touro de força”, levantando-se com corajosa virilidade sobrepujando-se a um ataque que estivera a 6mm de lhe tirar a vida.
E foi então que o patriotismo do velho Senhor, causticado por uma vida cheia de golpes duros e muito sofrimento, falou mais alto e Biden desistiu da corrida presidencial. E logo apostou no futuro, apoiando a Vice-Presidente Kamala Harris. Foi uma decisão que teve tanto de dolorosa como de patriótica. Foi tomada no fim de semanas de pressão altíssima para que desistisse. Justificou-a assim: “Acredito que é no melhor interesse do meu partido e do país”.
Nas horas subsequentes ao anúncio de Joe Biden vários dirigentes democratas aplaudiram a decisão: Nancy Pelosi, a veterana ex-Presidente da Câmara dos Representantes, o casal Bill e Hillary Clinton, diferentes governadores e senadores, alguns deles nomes também presidenciáveis, na sucessão de Biden. Kamala Harris anunciou de imediato a sua decisão de tentar a nomeação, uma vez que contava com o apoio explícito e determinado de Biden. E iniciou a sua pré-campanha a alta velocidade: em apenas 24 horas após a desistência de Biden a vice-presidente angariou 81 milhões de dólares para a sua campanha e obteve, como já se disse, o apoio de potenciais adversários. Ainda assim, o ex-presidente Barack Obama ainda não lhe concedeu o apoio. Também os dois líderes democratas no Congresso – na Câmara dos Representantes e no Senado – limitaram-se a elogiar o propósito de Kamala Harris de querer “conquistar” a nomeação nas próximas semanas, evitando que o eleitorado democrata a veja apenas como candidata do “aparelho”. É que, na verdade, Harris está longe de “fazer o pleno” dentro do partido democrata. Por um lado, é tida como pertencendo à ala esquerda do partido e, por outro, sendo oriunda da Califórnia, não faz as preferências dos swing states (Nevada, Arizona, Wisconsin, Michigan, Pensilvânia e Geórgia), onde não tem raízes nem empatia política – nem com esses Estados nem com o Midwest. A verdade, porem, é que o apoio dado por Biden, a sua disponibilidade para avançar e a sua posição político/constitucional (é a vice-presidente) lhe dão um lugar de liderança neste arranque.
E começou bem! Apelando à sua experiência enquanto Procuradora-Geral no Estado da Califórnia e, designadamente, na perseguição da criminalidade sexual e financeira, desenvolveu uma forte argumentação contra Trump, absolutamente inatacável por referir crimes praticados pelo candidato republicano, já condenado pela prática de um crime de abuso sexual e em mais de trinta crimes por fraude.
Isso não impede que os especialistas em política norte-americana se interroguem sobre se Kamala será capaz de mobilizar uma coligação eleitoral anti-Trump, assente na reconstrução da plataforma programática dos democratas. Acusam-na de ter tido uma carreira política curta, discreta até agora, tendo desempenhado “um papel objetivamente secundário” – Pedro Adão e Silva, “O que (não) sabemos sobre Kamala Harris”, cfr. a última pág. do “Público” de 24 de julho.
Como escreve Adão e Silva, se, no passado, o resultado de Kamala contra Trump nas sondagens era pior do que o de Biden, após o lamentável debate de finais de junho, Kamala ultrapassou frequentemente Biden como oponente mais eficaz contra Trump. “Os dados ainda são frágeis, mas sugerem que Kamala pode crescer. Biden dificilmente conseguiria”. Os republicanos e, concretamente a dupla presidencial Trump/Vance, já dão sinais de inquietação e de crescente nervosismo. É o que demonstra a “exigência” de que Biden abandone de imediato o exercício das funções presidenciais, com o argumento de que, se não está em condições de ser candidato às eleições presidenciais de novembro, também não estará por certo apto para governar o País até às eleições. Um outro sinal de alarme é revelado pelo facto de a dupla eleitoral republicana se mostrar indignada pelo facto de os fundos recolhidos durante a campanha por Biden transitarem para Kamala. Talvez já se tenham apercebido de que o facto de a candidata democrata ser uma mulher indo-afro-americana poderá trazer-lhe muitas simpatias.
Vamos ter pela frente, seguramente, umas eleições sujas e por certo violentas. Mas agora, o idoso é Donald Trump. Esta mudança radical dos termos da campanha impõe, por isso, uma rotura na estratégia e no discurso dos republicanos, até agora assentes na idade e na decrepitude de Biden e na deterioração das suas qualidades para ser Presidente dos EUA. Será que se revelarão proféticas as palavras de Nikki Haley quando disputava as primárias republicanas contra Trump: “o primeiro partido a retirar o seu candidato de 80 anos sairá vencedor das eleições”?

Lisboa, 24 de julho de 2024

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