Olhos nos olhos
Fui um dia procurado por um homem que necessitava dos meus serviços, pois tinha sido acusado de um crime. Narrou o seguinte:
«Vivo no Bairro X, juntamente com a minha mulher e os meus filhos. No mesmo Bairro, mora o meu cunhado F, que é “apoucado“, isto é, tem um pequeno atraso. Contudo, trabalha e tem família constituída. Dadas as suas dificuldades, nunca conseguiu “tirar a carta de condução”. Porém, é proprietário dum automóvel.
No Natal, há três anos, houve uma noite em que faltou a água no bairro. Ora, este meu cunhado, cerca das oito da noite, passou em minha casa e perguntou se eu queria, com ele, ”ir à água” num fontanário que dista da minha casa cerca de dois quilómetros. Aceitei e fui. A caminho do fontanário, a certa altura, aparece, de súbito, uma criança. O meu cunhado não conseguiu parar e colheu o menino. Eu gritei “pára, pára“. Mas ele, decerto pelo facto de não ter carta, não parou e fugiu do local. Mais adiante, na mesma noite, fomos interceptados pela polícia e presos. Fomos ouvidos pelo Juiz no dia seguinte, que nos mandou aguardar o julgamento, em liberdade. Precisava, assim, que o Senhor Doutor preparasse a minha defesa e a do meu cunhado.»
Expliquei que, em meu entender, as defesas eram incompatíveis, pelo que não podia aceitar a defesa de ambos, mas o cliente disse que as defesas não eram incompatíveis, pois que o cunhado reconhecia a culpa, havia confessado os factos integralmente e precisavam muito de apoio para o julgamento.
No dia do julgamento, o tribunal começou, como sempre, por ouvir os réus, tendo o condutor assumido a culpa, dizendo que não tinha conseguido parar o carro, apesar de vir devagar e que, após ter colhido a criança, fugira, pelo facto de não estar habilitado a conduzir.
O “meu cliente” confirmou tudo o que o seu co-réu dissera, acrescentando que bem lhe pedira – ao cunhado – que parasse, mas este não obedeceu.
A seguir, o tribunal ouviu o ofendido, pois a criança atropelada havia sobrevivido e estava ali, cheia de saúde.
O depoimento deste garoto foi a coisa mais tocante que algum dia ouvi em tribunal.
O juiz perguntou à criança se se lembrava do acidente, ao que ela respondeu:
– Lembro-me muito bem, Sr. Dr. Juiz e este homem – apontando para o condutor – não teve culpa nenhuma.
– Isso é o que vamos ver. – Disse o juiz.
– Mas é que não teve mesmo. – Insistiu o garoto.
– O Senhor Dr. Juiz já foi ao local? – Perguntou a criança.
– Não. – Respondeu o juiz.
– Se lá tivesse ido, via logo que estou a dizer a verdade, se bem que aquilo agora – referindo-se à estrada – já não está como estava. – Tornou o garoto.
– Todos os dias, àquela hora – continuou a criança – eu punha-me em cima do meu “skate” e descia um morro de saibro, que ali havia naquela ocasião, e caía direito na estrada, da altura de um metro.
– Mas sendo assim – disse o Juiz – este homem – apontando o réu condutor – do lado de onde vinha tinha forçosamente de te ver, pois a estrada, ali, é uma recta.
– Pois é – disse o miúdo – mas eu ainda não disse que havia um tapume de madeira, aí com cerca de metro e meio de altura, do lado de onde vinha o carro. Ora o Senhor Dr. Juiz está a ver – insistia o garoto – que com um tapume daquela altura, eu, que era mais pequeno e que, ainda por cima, vinha agachado, não podia ser visto.
– Bem, – disse o juiz – assim é outra coisa.
Levantando-se num salto, o réu condutor disse:
– Senhor Dr. Juiz, o menino mente. Eu bem o vi.