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O Mar de Santo António

Estão os Santos Populares a bater à porta dos nossos folguedos. Oxalá sejam eles sempre sãos para fazerem bem ao corpo e alegria e bem ao espírito. E Santo António é o porteiro destes festejos populares a abrir as portas da Lisboa Capital e de outras capitais de devoção, de que não se fala tanto, mas onde Santo António está no andor das celebrações festivas trazendo ao colo o Divino Salvador feito Menino.

Conta a lenda que um conde muito rico possuía um grande castelo onde vivia e onde era habitual albergar frades franciscanos. Um dia, Frei António e seu companheiro de viagem, sabendo da costumada hospitalidade do conde, batem à porta do castelo pedindo para pernoitarem. Foram acolhidos aí com a habitual cordialidade. Servida uma refeição quente e disponibilizado que foi um quarto a cada um, tudo parecia decorrer com normalidade. O conde, já noite, antes de se recolher, deu uma volta pelo castelo e saber se estava tudo bem com os seus hóspedes. Foi quando viu que a porta do quarto de Frei António se encontrava ligeiramente aberta e, de uma pequena fresta, projectava-se para o exterior uma luz muito intensa. Vencido pela curiosidade, aproxima-se e vê o inesperado: Nossa Senhora coloca o Menino Jesus no colo de Frei António que o recebe com alegria e ternura. Frei António, que dera pela presença do conde, solicitou-lhe que nada revelasse do que havia visto enquanto ele fosse vivo. Por isso a visão só foi conhecida depois da morte de Santo António na cidade de Pádua.

Diz a lenda que esta é a razão pela qual a iconografia, entre outros eventuais adereços, como um livro, uma cruz, uma açucena ou um saco de pão, apresenta habitualmente Santo António como jovem tonsurado com o Menino Jesus ao colo. Do lado direito ou do lado esquerdo ou, mais raramente, nos dois braços com mãos entrelaçadas. O povo vai dizendo – sabe-se lá porquê – que o Santo com o Menino no lado direito é o Santo António casamenteiro e o Santo com o Menino no lado esquerdo é o Santo António milagreiro.

António que sou, sou também devoto de Santo António e tenho aqui, ao lado, algumas imagens do Santo de origens várias e criações artísticas bem diferentes. Sei que Ele, o Santo, é só um, mas sinto que o rosto de cada imagem me olha de modo diverso, como de modo diverso me olham as imagens de Santo António que vou encontrando por esse país adentro ou fora dele, nas igrejas, nas ruas e pracetas ou casas particulares, como a da Amália Rodrigues, transformada em museu, onde fui encontrar, em lugar nobre, uma imagem do Santo Lisboeta em tudo semelhante a uma que também eu possuo em casa. Desde que visitei o museu da Amália, quando agora olho para essa imagem, vejo Santo António fadista a ensinar Lisboa a cantar, como vejo, noutra imagem ao lado, o Santo a ensinar o Menino Jesus a andar.

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Quando passeio Lisboa e olho para as montras de algumas ruas pejadas de possíveis recordações lisboetas para os turistas de cá ou de além-fronteiras, no meio de algum gosto discutível, fico a admirar os artistas e artesãos que tão bem sabem moldar o Santo de Lisboa aos hábitos ou aos viveres de muitos. À antiga, que toda a gente conhece, como à maneira das vidas de agora para surpresa minha, e de muitos, certamente. Já ouvi gente a dizer que era «falta de respeito tratar assim o Santo» com estas imagens fantasiosas. Não duvido do bom espírito e santa veneração de quem assim pensa, mas eu facilmente imagino o Santo António de hoje a andar de bicicleta ou de trotineta a subir e a descer, com outra criançada, as encostas das colinas de Lisboa. Como também o posso imaginar com o Menino Jesus às cavalitas ou a levá-lo pela mão para o ensinar a andar no largo frente à casa onde nasceu, no largo com o seu nome e à frente da sua igreja, lugares de peregrinação. Ou então, como já vi, imaginar o jovem tonsurado franciscano com o Menino Jesus fadista a tocar guitarra. E agora até anda por aí um Santo António vestido de verde que serviu de lembrança do município lisboeta aos responsáveis sportinguistas.

Santo António nasceu em Lisboa, mas foi um grande viajante e grande viajante é também a veneração que lhe é devotada por essa Terra além. Ela está em Lisboa, de onde um dia partiu para nunca ali regressar, como se encontra em Pádua aonde um dia chegou e onde faleceu e foi sepultado. Ou no longínquo Vietname para onde foi levado nas antigas caravelas dos portugueses.

Não é desse mar das caravelas o mar de Santo António. Esse mar, são mares. Ao tempo, quando Fernando [Martins?] – não Fernando de Bulhões conforme uma antiga tradição – nasceu em Lisboa, ainda não havia caravelas das grandes viagens por mares e Portugal tinha acabado de nascer. Santo António, o menino Fernando que viria a professar como Frei António, nasceu, segundo rezam estudos recentes, em 1192, embora se continue a falar de 15 de Agosto de 1195. Ora, o reconhecimento papal do reino de Portugal dá-se em 1179 pela bula de 23 de Maio “Manifestis probatum” de Alexandre III que declarou o Condado Portucalense independente do Reino de Leão e reconheceu D. Afonso Henriques como rei soberano do novo reino, validando assim o Tratado de Zamora que tinha sido assinado a 5 de Outubro de 1143 pelo rei de Leão e por D. Afonso Henriques. Bem se pode dizer que Santo António tem a idade de Portugal e, com razão, ele é o seu padroeiro, a par de Nossa Senhora da Conceição, sua padroeira principal.

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O mar de Santo António não é, pois, o mar das caravelas, os mares do muito além. Esses haviam de esperar mais uns séculos pela aventura dos portugueses. Não é, pois, dos mares das caravelas, o mar de Santo António. O mar de Santo António é o mar aqui bem mais perto, é o Mediterrâneo. Não porque o tenha navegado muito, que também por ele houve que navegar, mas porque, aventureiramente, muito o circundou guiado pela luz do espírito franciscano que tão bem soube encarnar.

Não se conhece de todo o percurso do viajante Frei António. Na falta de melhores certezas, seguimos aqui o percurso apontado «Nos Passos de Santo António» pelo escritor e viajante Gonçalo Cadilhe que descreve o périplo feito por ele utilizando os transportes públicos e outros meios disponíveis, imaginando-se um companheiro de marcha de Frei António de Lisboa. Lisboa, Sevilha, Ceuta, Marraquexe, Argel, Annaba (a Hipona de Santo Agostinho), Tunis, Sicília (Palermo e Messina), Roma. Assis, La Verna, Montepaolo, Bolonha, Moncenisio, Lyon, Puy-en-Velay, Brive, Albi, de Toulouse, Roma, Spoleto e Pádua. E aqui morreu este aventureiro do espírito, este viajante português. Teólogo, asceta, místico, grande orador nas terras peregrinas e doutor da Igreja, «em cuja alma desabrocharam algumas das primeiras flores do lirismo e do naturalismo lusitano», como escreveu Jaime Cortesão [1884-1960], foi canonizado 11 meses após a morte, a 30 de Maio de 1232.

Santo António de Lisboa será um dos santos mais populares da Igreja Católica no mundo. Nós, portugueses, dizemo-lo Santo António de Lisboa e os italianos dizem-no Santo António de Pádua. Não será de admirar. Ele morreu em Pádua e, na mentalidade cristã, particularmente na mentalidade da época medieval, o dia da morte, dia em que entra na Glória Celeste, é verdadeiramente o dia do nascimento. E esse dia é o13 de Junho de 1231 acontecido em Pádua, na Itália.

Entre Lisboa e Pádua está um mar e todos os mares. Estão os recantos da Terra para onde foi levada a veneração de Santo António pelos mareantes portugueses. A distância entre Lisboa e Pádua possui esse tamanho. É o tamanho do mundo e dos seus mares. É o mundo do Santo de Lisboa que é também Doutor da Igreja. É o “Doctor Evangelicus”, o Doutor Evangélico.

Guarda, Aniversário da canonização de Santo António, 30 de Maio de 2024

António Salvado Morgado

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