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O LANÇADOR DO PIÃO

Histórias que a Vida Conta

Uma destas noites tive um sonho. Vi-me transportado aos meus tempos de infância, quando vivia na Guarda e lançava o pião no meu quintal. Um dia, apareceu um vizinho e colega de escola que me quis tirar o pião. Eu reagi: que o pião era meu, me tinha saído numa rifa… Ele respondeu que merecia o pião muito mais do que eu, porque sabia lançá-lo muito melhor. Eu não me fiquei! Indignado, argumentei que eu até já tinha ganho dois campeonatos de lançamento de pião lá na nossa rua e estava em condições de vencer o terceiro. Chamei-lhe traidor ambicioso e acusei-o de que se queria aproveitar do que não lhe pertencia e do meu esforço. Ele continuava a dizer que eu não enrolava o baraço como devia ser e que não lançava o pião com a necessária destreza e convicção. Segundo ele eu não tinha qualquer hipótese de ganhar o campeonato inter-escolas, mais competitivo e difícil do que os anteriores, limitados à nossa rua. Pelo contrário, ele, mais experiente e temido pelos adversários, era um vencedor antecipado, se pudesse dispor de um pião com a qualidade do meu. Propunha-se, por isso, comprar-mo. Recusei a proposta, ao mesmo tempo que a minha indignação crescia. O que ele queria era ganhar à minha custa, tirar proveito das minhas anteriores vitórias e da qualidade do meu pião, tão cobiçado pela sua forma aerodinâmica, lindo de morrer no seu interminável rodopiar, com um bico metálico progressivamente afeiçoado ao piso pelos meus lançamentos e que não magoava a palma da mão quando o apanhava em pleno movimento giratório. Quando nos preparávamos para resolver a contenda à “bulha”, alguém sugeriu outra solução: fazer-se um campeonato de dez lançamentos, ficando o pião para o vencedor. Apesar de me sentir injustiçado, aceitei o repto, para que não se pensasse que tinha medo do confronto ou que estava agarrado à vaidade de representar a nossa Escola a qualquer preço. Entretanto, acordei subitamente do meu sonho…
Confesso que não sei se foi a luta interna no PS que espoletou o meu sonho ou se foi este que me induziu a pensar na luta que há meses opõe António José Seguro e António Costa. Mas duas coisas são certas: por um lado, o episódio que esteve na origem do meu sonho tem manifestas afinidades com a génese da confrontação que divide o maior partido da oposição; mas, por outro, ao contrário do meu sonho, a luta que se trava no PS não é uma história de “garotos e de piões”. É, ou devia ser, um afrontamento entre pessoas adultas, empenhadas acima de tudo no bem público e no futuro do País. Mas, às vezes, mais parece uma refrega de miúdos: um, amuado por ver o outro querer apoderar-se do seu cargo e do correspondente estatuto, faz “beicinho”, choraminga, depois gesticula e acusa o oponente de deslealdade e de traição por lhe querer roubar o “poleiro”; o outro, convencido da sua superioridade, invoca os interesses partidário e nacional para disputar a candidatura à liderança e assume uma postura de estadista, evitando ataques de carácter, mas dizendo o suficiente para se perceber o que pensa do desafiado.
Nas profissões que fazem uso do verbo – falado ou escrito – há os bons e os maus comunicadores. Isto aplica-se, como é evidente, aos políticos, que fazem da palavra o seu principal instrumento de trabalho e do argumento a sua arma de combate. Todos conhecemos pessoas inteligentes mas que não sabem comunicar, por falta de carisma ou por se enredarem num crochet mental que cansa quem os ouve. Pelo contrário, outros há que, estando longe de ter um pensamento original e sendo cultores da arte de “falar bem sem dizer nada”, podem revelar-se competidores temíveis na discussão superficial da espuma dos factos políticos.
Nos dois debates já realizados, foi possível constatar as diferenças entre os candidatos em matéria de capacidade de comunicação. A meu ver, a apreciação de um qualquer frente a frente político impõe a análise de diversos parâmetros, entre os quais podemos destacar os seguintes: as ideias, a estratégia, a postura – incluindo a capacidade de convencimento, as reacções faciais ou a gesticulação -, a par das incoerências e mentiras, das promessas, dos sound bytes ou das gaffes…
Vejamos: no que se refere a ideias, gostaríamos que os candidatos se pronunciassem sobre temas tais como o financiamento, a dimensão, estrutura e funções do Estado – distinguindo entre as que deve continuar a desempenhar e as de que deve abdicar -, a redução dos défices, juros, prazos e pagamento da dívida, as reformas da Justiça e na Saúde, o futuro da Segurança Social e da Educação, a questão da Europa, a luta eficaz contra a corrupção, a melhoria efectiva da supervisão do sistema financeiro, uma visão, enfim, sobre os extremismos que ameaçam o mundo civilizado tais como o terrorismo islâmico. Convir-se-á que pouco, muito pouco, se tem ouvido aos candidatos sobre estes e outros temas.
Em matéria de estratégia, assistiu-se, mormente no primeiro debate, a uma atitude de vitimização, agressiva, dorida mas demagógica de Seguro, perante um comportamento mais sereno, quiçá excessivamente impassível, por parte de Costa. Reconheceu-se genericamente que o actual secretário-geral venceu o primeiro debate. Para isso contribuiu o suplemento vitamínico resultante das queixas morais que invocou, transformando-as em ataques de carácter contra o seu oponente. Em jeito do dono do pião de que o seu desafiante se quer apropriar. Tal estratégia não podia manter-se no segundo debate. E, assim, os papéis quase se inverteram, e António Costa, sem ser brilhante, tornou-se mais acutilante e combativo e terá vencido este segundo debate. No que se refere à postura, tivemos nele o ar sério, de “homem de Estado”, jogando à defesa, com uma prudência que esteve longe de encantar, a par de um Seguro, com atitude, ora de vítima lamentosa (a postura “Calimero”, de que alguns falaram), ora de líder afirmativo, duro e castigador, sorriso vagamente irónico, mas soando a falso, pontuando expressões retóricas num deslocado tom conselheiral (v. g., “olhos nos olhos”, “isso fica-te mal, António!”).
Na realidade, o que, segundo penso, vai ser decisivo para o voto de militantes e simpatizantes socialistas nas primárias de 28 de Setembro será o sentimento sobre qual dos candidatos terá mais hipóteses de conduzir o partido a uma vitória clara.
Nesse contexto, a maior dificuldade para Costa reside no efeito tóxico da colagem que dele se faz à governação despesista e irresponsável de Sócrates, que conduziu o País a uma situação de pré-bancarrota. Para Seguro, a sua fragilidade resulta de uma liderança epidérmica, frouxa e nada convincente. E, pessoalmente, acrescento uma gaffe grave que cometeu no seu primeiro debate, quando afirmou, para dar peso à sua promessa de não vir a aumentar a carga fiscal, que se demitiria se tivesse de aumentar impostos.
E assim, retomando o assunto do meu sonho, direi que tal pensamento apenas poderia passar pela cabeça de uma criança de nove ou dez anos a lutar tenazmente pelo seu pião. Só que aqui não era o jogo do pião – era o do “toca e foge”…

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