O CISNE NEGRO
Na crónica anterior trouxe aqui a história dos bois teimosos. Hoje apresento-me com o Cisne Negro. Não sou biólogo e muito menos ornitólogo, embora aprecie o encanto e a beleza das aves e gostasse em miúdo, como gosto ainda hoje, de observar os pássaros na sua variedade, no colorido das penas, nos seus comportamentos e voo. Na minha aldeia não havia um Tejo com cisnes, mas o seu rio era como o da aldeia de Fernando Pessoa: ensinou-me e deu-me muito, mas nunca me ensinou a acreditar na plumagem branca de «todos» os cisnes. Por isso não vou falar de cisnes dos rios ou lagos, brancos ou negros, mas dos cisnes, negros ou brancos, como metáfora de vida. Mas vamos primeiro ao futebol que é também imagem da mesma vida.
O Futebol Clube do Porto foi eliminado da Taça Europa, tal como o Sporting o havia sido duas horas antes. Ambos vencidos por equipas alemãs, o Bayer de Leverkusen e o Borussia de Dortmund, precisamente duas equipas que se haviam defrontado dias antes na liga do seu país, num jogo que ficará para a história pelo insólito: um treinador recusa-se a cumprir a ordem de expulsão dada pelo juiz da partida. Em resposta o árbitro recusa-se a continuar o jogo e abandona o relvado.
Na Turquia outro caso não menos estranho. Aí um jogador consegue apoderar-se do cartão vermelho da mão do árbitro e, enquanto com o indicador da mão esquerda aponta o caminho a seguir, a mão direita, bem erguida ao alto, exibe o cartão vermelho roubado ao juiz da partida. E isto acompanhado de um leve sorriso nos lábios. Mas o insólito não termina aqui. Dizem os jornais que a atitude do jogador não fora condenada e que os jogadores do clube – haviam sido expulsos vários – terão sido recebidos como heróis pelos adeptos. Mais se nos diz: o clube iria vender camisetas com a imagem do seu jogador a exibir o cartão vermelho ao árbitro.
Lembrando o caso do jogador da selecção nacional que agrediu o juiz da partida em jogo para o campeonato do mundo, mais se enraizou em mim a ideia de que verdadeiramente o futebol são muitas lições e que a partir de um só jogo se conjugam todas as ciências: da física e química, biologia e ciências da saúde até à generalidade das ciências humanas como a economia, a sociologia ou a psicologia. E, naturalmente, a filosofia, aquele saber que, implícita ou explicitamente, acompanha o ser humano em todos os passos, mesmo, ou sobretudo, quando se desrespeita um juiz e se recusa, pública e ostensivamente, o seu veredicto: seja num jogo ou na realidade da vida.
Verdadeiramente o futebol, mais do que uma lição, ele é um jogo de muitas lições, tal como a Coimbra dos doutores.
E vem-me à memória o livro de N. N. Taleb, «O Cisne Negro: o impacto do altamente improvável». Regressemos, então, aos cisnes.
Aqueles acontecimentos passados em campos de futebol caracterizam-se pela raridade, grande impacto e previsibilidade retrospectiva. São pois, na linguagem de Taleb, Cisnes Negros, nome adoptado como evocação da descoberta da existência de cisnes negros na Austrália. Antes, como se julgava, todos os cisnes eram brancos. A observação de milhões de cisnes brancos assim o confirmava todos os dias na velha Europa. Mas a fragilidade do nosso conhecimento poderia ser evidenciada pela existência de um só Cisne Negro. A descoberta da Austrália feriu de morte a razoabilidade daquela proposição universal.
Como será sabido, estamos perante um clássico problema lógico-filosófico do fundamento do raciocínio indutivo: como é que, partindo de algumas observações, por milhões que sejam, podemos formular proposições universais?
Os casos referidos, porque espelham o desrespeito ostensivo pela autoridade constituída, poderão ser chamados «Cisnes Negros negativos», embora possam vir a evoluir para «positivos» se vierem a propiciar melhorias nas regras. Todavia, não saindo ainda do futebol, lembremos a grande penalidade marcada recentemente por Messi: em vez de rematar à baliza, como seria «normal», com um toque subtil, encaminha a bola para um local «anormal» para que um colega da equipa pudesse marcar o golo com indisfarçável «naturalidade». E o golo foi validado pelo juiz da partida. Uma espécie de «ovo de Colombo» de evidente explicação retrospectiva.
Não julguemos, porém, que os Cisnes Negros são aves raras; eles acompanham-nos, positiva e negativamente. Eles andam por aí, sem darmos por eles, mas são, quantas vezes, oportunidades existenciais decisivas. Habituados como estamos a centrar a atenção no que julgamos «normal», vamos alimentando a cegueira relativamente ao extraordinário. Ou então, se forem negativos, alguém no-los fará fazer chegar a casa, particularmente pela televisão que, qual ave da rapina, parece só ter antena noticiosa para os Cisnes Negros negativos: corrupção, assaltos, homicídios, e outros horrores da humana fragilidade ou maldade. O bem não tem história: eis o princípio que parece subjazer à actividade noticiosa corrente, ou «normal», da televisão. Os actos de heroicidade diária, inspirados no Amor e na Misericórdia de Deus, de tantos santos anónimos só muito raramente têm direito a voz nos areópagos dos espaços públicos. Mas eles aí permanecem nas austrálias do nosso esquecimento mas, certamente, na Memória do Eterno. É mais importante o que não conhecemos, ou nos fazem ignorar, do que aquilo que julgamos conhecer.
Guarda, 2016-02-27