O Cardo

Encontramos na Sagrada Escritura todo um jardim bíblico constituído por inúmeras plantas.

Mais conhecidas algumas, como a figueira, o salgueiro, o cedro, a oliveira, a palmeira, a videira, o lírio ou o trigo, por exemplo; outras menos comuns para nós, como a sarça, o sicómoro, o nardo ou o hissopo, entre outras. O cardo é a segunda planta a ser referida na Bíblia pelo próprio nome. Aparece primeiro a figueira cujas folhas serviram para Adão e Eva se cobrirem quando, após a queda, tomaram consciência da nudez. Alguns versículos depois, quando o Senhor se dirige a Adão, podemos ler: «… maldito seja o solo por tua culpa: dele comerás com fadiga enquanto viveres; para ti produzirá cardos e espinhos, e comerás erva do campo.»1 O cardo ficará assim na História como eterna memória da maldição do solo que o Homem deverá trabalhar para dele extrair, com fadiga, o necessário alimento. Não só memória da maldição. O cardo será também apelo à conversão e evocação do temor de Deus perante o amor com que Ele o criou. Culpa, conversão e temor de Deus, não serão sentimentos muito em voga neste nosso mundo em que o Homem, ao comprazer-se com as suas conquistas, se julga em absoluto autossuficiente e esquece a Transcendência, seja ela assim referida ou com outros nomes do dizer humano. Mas não será despiciendo lembrar que, errando, o Homem é também um “animal penitente”. A palavra «penitência», também muito fora da mentalidade de hoje, talvez possa aglutinar a culpa, a conversão e o temor de Deus. Somos penitentes em razão da nossa errância nos caminhos da vida. Estou em crer que a nossa saúde mental e espiritual estará muito dependente do modo como correspondemos a esta situação existencial.A palavra «penitência» provém directamente do termo latino «poeninentia» com raiz em «poena». De «pena», diremos nós. O Génesis não no-lo diz abertamente, mas pena é o que terão sentido Adão e Eva após a queda ao verem-se na situação de penitentes. Pena no duplo sentido da palavra. Pena enquanto dor, sofrimento interior profundo, sentimento de culpa fruto do julgamento do mal feito e pena no sentido de expiação e reparação do mal. A pena assim entendida é a penitência no sentido meramente humano. Creio não andar longe da verdade se disser que a penitência antes de ser uma virtude cristã e um sacramento, é um sentimento com origem no juízo de uma razão esclarecida do «animal dolente» que é também o Homem.É, pois, o Homem um «animal penitente» e a penitência bem compreendida poderá ser vista como a alegria da paz de espírito. Por isso já dizia acima que da penitência poderá depender a nossa saúde mental e espiritual. Atrevo-me a dizer que ela poderá reduzir a ansiedade e gerar esperança e optimismo. Ela poderá ser fonte de perdão e enriquecer as relações de cada um consigo e com os outros. Ela poderá ajudar cada um a adaptar-se melhor, e mais facilmente, aos contratempos e cardos do caminho e proporcionar-lhe melhor qualidade de vida.«Dolente» e «penitente», o Homem é também o «Homo creator», o Homem criador que sabe aproveitar o solo e os espinhos do cardo para descobrir as suas potencialidades. Assim surgem as descobertas e invenções, com ou sem história narrada, de que hoje fazemos a nossa vida. E não são só aquelas descobertas científicas e invenções tecnológicas, noticiadas com estrondo, que hoje enchem os nossos ambientes, quer da casa que habitamos, das ruas que diariamente atravessamos, dos espaços em que trabalhamos ou dos centros de comércio em que nos abastecemos. E não será necessário lembrar a ciência materializada na célere criação de vacinas contra o vírus cruel que nos assola. São também invenções e descobertas feitas no outrora dos tempos em que Adão e os filhos de Eva começaram a saborear a alegria de uma descoberta ou da invenção de uma qualquer engenhoca, fosse ela o vestido tecido à pressa com as folhas de figueira, o tosco arado para lavrar a terra, as virtualidades das plantas e dos animais, ou então, mais abstractamente, os primeiros cálculos matemáticos para medir a terra ou contar os animais. Tudo criações ou descobertas deste ser dolente, penitente e criador que é o Homem. Muito devemos nós a estes nossos penitentes antepassados! Com penitência foram cavando os alicerces da cultura de que hoje nos orgulhamos. Bem merecem a nossa gratidão.Não sabemos, e talvez nunca saibamos, quando e como foram descobertas as virtualidades do cardo. Certamente terão sido encontradas muito depois das suas características físicas: a flor de azul arroxeado a encimar um caule que pode atingir um metro de altura, as suas folhas largas e alongadas, rasgadas e cortantes de cor verde cinza e os espinhos aguçados do receptáculo ou cálice floral dispostos a afugentar qualquer intruso. Não sabemos quando nem como os nossos penitentes antepassados inventaram com o cardo uma medicina caseira nem quando eles fizeram a primeira experiência introduzindo-o num sistema de alimentação. Os cientistas de hoje poderão conhecer os elementos químicos que entram na composição dos pistilos e estames das flores do cardo, mas dificilmente algum dia o antropólogo poderá descobrir, de ciência certa, quando algum dos nossos penitentes antepassados se atreveu, apesar dos espinhos, a recolher os estames das suas flores para coalhar o leite dos rebanhos, dar largas ao seu engenho e elaborar o primeiro queijo. Quando hoje saboreamos um bom Queijo da Serra, amanteigado e de cor branca ou um tanto amarelada, poderemos saber que se trata de um queijo a que foi atribuída uma Denominação de Origem Protegida (DOP) em 1996 pela União Europeia; poderemos saber que se trata de um queijo feito a partir de leite de ovelha “Churra Mondegueira” alimentada com o pasto da Serra da Estrela. Não será necessário sermos grandes especialistas de queijos, para sabermos caracterizar o seu sabor distinguindo-o clarividentemente de outros, tal como o enólogo caracteriza os vinhos, mas escapa-nos a origem primigénia do queijo feito de leite coalhado com a flor do cardo. Isso permanece na lonjura dos tempos.Passou a Quaresma, o tempo por excelência de penitência para o penitente cristão, aquele tempo que culmina com o tríduo pascal, em que rememorando o sacrifício do cordeiro da Páscoa Judaica, faz sobretudo memória da Morte e Ressurreição d’Aquele que misteriosamente assumiu a humanidade do Homem para a elevar ao seio do Mistério Absoluto. É uma espécie de inversão da narrativa do Génesis. O cardo floresceu entre ervas e rochedos e os espinhos trouxeram a glória de um novo sabor da Árvore da Vida.Penitente, dolente, trabalhador e criador, o Homem é também um ser de festa. E a Páscoa é festa por excelência. Às nossas mesas trincha-se, com o aleluia de alegria, o cordeiro preparado no braseiro do forno e no calor da Fé. Para entrada, ou por sobremesa, poderá saborear-se o queijo, Queijo da Serra ou outro qualquer, desde que seja feito preferencialmente de leite de ovelha e coalhado com o cardo do campo onde o Homem vive com a saudade do Paraíso Perdido.Memória da maldição do solo e apelo ao trabalho de conversão, o cardo será também símbolo de quem pode descobrir as virtualidades da Terra que abriga a Humanidade, de quem a trabalha com ardor e cuida dela como da casa onde mora. Santa Páscoa.Guarda, 29 de Março de 2021(Endnotes)1 Gn 3, 17-18, conforme tradução de “A Bíblia do Peregrino”. Outras traduções utilizam «espinhos e abrolhos».

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