Quem esteve um pouco atento aos discursos e homilias do Papa Francisco em Portugal nos dias da Jornada Mundial da Juventude 2023 terá tomado consciência das muitas vezes que o Santo Padre desafiou os jovens, a não terem medo, quer numa espécie de convite imperativo quer numa forma simplesmente discursiva incitando a coragem juvenil.
Não só nas mensagens dirigidas aos jovens. O imperativo é para toda a Igreja em Portugal.
Sempre, desde que tenho memória de mim, o nono mês do ano anda associado no meu espírito a muitas coisas que condensam profundas vivências. Obviamente não as vou referir, mas sempre direi que elas estão ligadas aos produtos outonais e às colheitas dos campos. Estas vivências, porém, serão também as de toda aquela gente que, nascendo no campo, cedo aprendeu o que era «comer o pão com o suor do rosto» conjugado com a alegria da recolha do fruto do trabalho, depois de ter visto a semente a germinar e assistido, com alento e esperança, ao florir da sementeira e ao desenvolvimento da plantação.
Mas o mês de Setembro sempre me lembra o dia com que ele, este nono mês do ano, era coroado. Era a festa da terra, celebrada em honra de São Miguel, o Arcanjo padroeiro da aldeia. E esta vivência já nem toda a gente tem. Nem todos terão nascido num pequeno povoado da Beira abençoado por este Arcanjo e festejado com devoção e brio pelos seus habitantes. Era no dia 29. O mês estava a findar. E findava lindamente coroado com missas, procissões, banda de música e foguetes. E, claro está, com a mesa familiar e de convivas recheada de coisas boas, enquanto os ouriços de alguns castanheiros – ou seria só um a madrugar tão cedo? – começavam a largar as primeiras castanhas longais, sempre esperadas pela criançada.
Ali à volta, cada terra tinha a sua festa, neste ou naquele mês do ano. Em honra dos seus padroeiros, claro está, mas em mais nenhuma, que então eu soubesse, em louvor de São Miguel. O Arcanjo era só nosso. Só nosso mesmo, assim julgava a pequenada para quem a festa tinha muitos bons sabores.
Mas um sabor era especial. Especialíssimo, mesmo, e preparado com ardor e fervor. A festa de São Miguel Arcanjo era também a festa em que as crianças da terra faziam a primeira comunhão. Era na missa das nove horas. Vestidas a preceito e dispostas em duas filas ao longo da cochia, eram conduzidas por anjos até ao sopé do altar para receberem das mãos do sacerdote a divina partícula. E os anjos iam e vinham levando e trazendo aquelas felizes crianças num vaivém divinamente solene que muitos, certamente, lembrarão.
É, sobretudo, por isso que o nono mês do ano ficou a minha memória com uma ressonância especial. Depois a festa foi antecipada para Agosto mas o São Miguel Arcanjo litúrgico lá ficou a 29 de Setembro na companhia de mais dois arcanjos, Gabriel e Rafael, a lembrar-me para sempre a primeira comunhão.
Os Anjos e Arcanjos… esses seres puramente espirituais que perpassam toda a Bíblia, Antigo e Novo Testamento, com nome ou simplesmente como “Anjo do Senhor”, e cuja presença penetrou nos múltiplos domínios da cultura. Não haverá âmbito algum da existência humana onde não se encontre bem visível a sua presença. Se na exegese bíblica os anjos são compreendidos no quadro da interpretação crítica, literária e sistemática da Escritura Sagrada, a filosofia e a teologia pretendem conhecer o modo específico do seu ser, da sua natureza, do laço que os une ao Ser divino e ao ordenamento do mundo humano; se no domínio devocional e místico são modelo de elevação espiritual e mediadores no caminho do crente para uma vida santa, no âmbito da liturgia eles possuem a sua festa e são presença assídua no desenrolar do culto e na oração em geral.
Os anjos estão presentes de modo eminentemente mais visível na arte, desde a literatura e poesia até, e particularmente, à pintura, escultura e arquitectura, desde os primeiros frescos das catacumbas, até ao Anjo de uma das novas rotundas da cidade da Guarda – onde «até o Anjo é da Guarda» -, passando, obviamente, pelos mosaicos medievais e pela exuberância pictórica e escultórica da época do Renascimento. E não esqueçamos as capelas e igrejas das nossas povoações com as suas imagens e a talha dourada dos retábulos cheia de anjos. Aqui e ali, ou quase sempre, lá se encontram os anjos musicais com instrumentos de sopro ou de corda a entoar melodias de louvor e glória eterna.
Possuem, pois, os anjos uma omnipresença espiritual na vida dos humanos, mas, em paralelo, em todos os produtos da cultura e dos espaços existenciais: ruas, praças, igrejas, cemitérios. De Roma à Guarda, de Moscovo a Kyiv. Com asas ou sem elas. Na mais esplendorosamente artística catedral ou na mais humilde habitação humana. Omnipresença física, nas letras, na arte e nos espaços, e omnipresença espiritual na existência vivida da liturgia, do culto e da devoção dos fiéis.
Já o lembrámos acima: os anjos perpassam toda a Bíblia, particularmente em momentos decisivos da História da Salvação. Revisitemos alguns quadros retirados dos Evangelhos.
Seja o Anjo do Senhor, Gabriel, a dizer a Zacarias: «Não temas, Zacarias: a tua súplica foi atendida. Isabel, tua esposa, vai dar-te um filho e tu vais chamar-lhe João» [Lc 1,13]. Seja o mesmo Anjo Gabriel a incitar Maria a não ter medo quando anuncia a maternidade messiânica: «Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus» [Lc 1, 26-38). Seja o Anjo do sonho de José a dizer: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo» [Mt 1, 20.21]. Seja o Anjo de Senhor a anunciar aos pastores o nascimento do Messias: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria que o será para todo o povo: hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» [Lc 2, 10-14]. Seja, finalmente, o quadro em que o Anjo de Senhor sossega Maria de Magdala e outra Maria junto ao sepulcro com estas palavras: «Não tenhais medo. Sei que buscais Jesus, o crucificado; não está aqui, pois ressuscitou como tinha dito» [Mt 28,6].
Na homilia feita no Mosteiro dos Jerónimos, mas vésperas cantadas com os Bispos, os Sacerdotes, os Diáconos, os Consagrados, as Consagradas, os Seminaristas e os Agentes de Pastoral, o Papa Francisco utiliza por quatro vezes a expressão «Não tenhais medo» e, na Universidade Católica, desafiando os universitários a «procurar e arriscar», que «Não devemos ter medo de nos sentir inquietos» para logo a seguir acrescentar: «tende a coragem de substituir os medos pelos sonhos: substituí os medos pelos sonhos, não sejais administradores de medos, mas empreendedores de sonhos!»
Mas, e isso chamará particularmente a atenção, é com o «Não tenhais medo» que o Papa Francisco termina as quatro intervenções realizadas perante aqueles milhares de jovens. No Parque Eduardo VII são os discursos pronunciados na cerimónia de acolhimento e na Via-Sacra com os jovens; no Parque do Tejo é o discurso da Vigília com os jovens e a homilia da Santa Missa. Sempre o Papa Francisco termina com o apelo reiterado: «Não tenhais medo». Num caso relacionando-o com o «amor de Deus» e noutro com a «ansiedade» e «as próprias misérias»; num terceiro relacionado com «a vontade de caminhar» «na esperança» olhando para as «raízes»; finalmente, na homilia final, Francisco lembra que é Jesus que o diz: «Não tenhais medo.»
Quando há tempos eu ouvi um homem vestido de branco, que chegara a Lisboa nas asas mecânicas de um moderno avião, exclamar repetidamente «Não tenhais medo», fui dando comigo a pensar que um Anjo mensageiro anda pelo mundo e chegou a Portugal numa luta contra o medo, como os Anjos Bíblia, que, sempre mensageiros, desafiavam os destinatários das mensagens a não terem medo. E ficamos a interrogar-nos: por que razão tão reiterada evocação papal do medo, também ela dirigida para «todos, todos, todos», desde os bispos da hierarquia da Igreja até à multidão dos jovens vindos de todo o mundo? Seja o leitor a encontrar a resposta.
Não, não me esqueci do Arcanjo São Miguel. No dia 29 de Setembro, graças ao Papa Francisco, o padroeiro da minha aldeia será intimamente celebrado com renovado vigor. Também ele, lá do altar ou do adro da sua igreja, vestido de soldado romano e de espada na mão, vai reiterando a mensagem celeste: «Não tenhais medo.»
Guarda, 13 de Setembro de 2023.