O título é “roubado”. Haverei de explicar. Mas antes um pedido de compreensão ao leitor por uma extensa citação que irá encontrar.
São as palavras do primeiro parágrafo da famosa obra intitulada “Quod nihil scitur” – Que nada se sabe – do filósofo bracarense Francisco Sanches (1550?-1623). Tenha coragem o leitor porque o texto, iniciado em 1574 e publicado em 1581, exige particular atenção. Francisco de Sanches, embora pareça, não está a fazer humor fácil com jogo de palavras e, muito menos, a brincar com o paciente leitor, a quem se dirige numa espécie de carta a servir de introdução que inicia assim: «É inato ao homem o querer saber; a poucos é dado o saber querer; a menos ainda o saber». O assunto era bem sério, à época. Mais sério ainda poderá ser hoje. Vamos então adiante com as palavras do pensador.«Nem sequer sei que não sei nada; conjecturo, porém, que nem eu nem os outros. De lábaro me servirá essa proposição, à qual se seguirá estoutra: nada se sabe. Se eu souber provar, com razão concluirei que nada se sabe; se não souber, tanto melhor, pois isso afirmava eu. Dirás talvez: se souberes provar, seguir-se-á o contrário, visto que já sabes alguma coisa. Não: antes de tu seguires, já eu tinha concluído contra. Já começo a embrulhar o assunto, e disso mesmo se segue que nada se sabe. Naturalmente não entendeste, e chamas-me ignorante ou sofista. Tens razão; mas acima de ti fico ainda eu, porque não entendeste, sendo ambos nós, portanto, ignorantes; e assim, sem o saberes, concluíste o que eu queria. Se compreendeste a ambiguidade da consequência, claramente viste que nada se sabe; se não compreendeste, pensa, distingue, e resolve-me a dificuldade. Aguça o teu engenho. Adiante. Comecemos pelo nome, pois para mim todas as definições são verbais, bem como quase todas as questões. Eu me explico.» Francisco Sanches explica-se ao longo de muitas páginas, bem densas, como se poderá imaginar. Deixemo-lo nas suas lucubrações e vamos ao “a propósito”, dada a estranheza do texto do filósofo. Explico-me agora eu mesmo não sabendo se me é dado «saber querer», para não dizer «o saber».Inicialmente pensei dar a este texto o título seguinte: «Afinal ainda sei ler». Depois, à medida que ia contactando com argumentários vindos daqui e dali, fiquei um tanto de espírito obnubilado e o título evoluiu para «Afinal já não sei ler». Num terceiro momento, confundido de todo, lembrei-me de Francisco Sanches e, parafraseando as suas palavras, pensei que «Afinal nem sequer sei que não sei ler». No meu espírito perplexo, começaram a bailar um com o outro os verbos «ler» e «saber» ao som tristonho de um acintoso «nem sequer». Dei então comigo, conduzido pela mão de Francisco Sanches, a escrever: «Nem sequer sei que não sei nada.» Mas logo pensei com o filósofo: «conjecturo, porém, que nem eu nem os outros.» Dir-se-á que «Já começo a embrulhar o assunto». Não… não. Eu só quero «saber querer» para poder chegar ao «saber». O assunto é que anda embrulhado porque os poderes o foram embrulhando. Lamentavelmente, direi. Retomo, pois, a companhia de Francisco Sanches, dirigindo-me, como ele, ao leitor: «se não compreendeste, pensa, distingue, e resolve-me a dificuldade. Aguça o teu engenho. Adiante. Comecemos pelo nome, pois para mim todas as definições são verbais, bem como quase todas as questões. Eu me explico.»Comecemos, então, pelo nome. Ou pelos nomes, já que o nome é uma multidão. Completamente a esmo, aqui ficam os mais significativos: eutanásia, sofrimento extremo, morte medicamente assistida, ética, morte digna, constitucionalidade, distanásia, sofrimento intolerável, dignidade humana, lesão definitiva, direito à vida, morte a pedido, liberdade, gravidade extrema, e outros. Complexa rede de nomes que têm vindo a ser ouvidos no espaço político e público. Com eles se foi constituindo um argumentário nebuloso, traduzido desde há mais de um ano em projectos partidários que culminaram num projecto legislativo único. Muitos partidos, ao não quererem perder o comboio em andamento, mais pareceram entrincheirar-se num preconceituoso «querer» a todo o preço do que fortalecer o humano «saber querer» e, menos ainda, o necessário, mas difícil, «saber» para se ler o que a Constituição da República assegura no n.º 1 do Artigo 24.º (Direito à vida) que singelamente assim reza: «A vida humana é inviolável.» Os pareceres de instituições várias, como, por exemplo, o Conselho Nacional de Ética (para que servirá ele?), a Ordem dos Médicos e personalidades de reconhecida competência jurídica e autoridade moral, foram simplesmente ignorados. Houve até um partido, de seu nome PSD, que ignorou na Assembleia da República uma moção aprovada no seu Congresso a favor do referendo. Vá lá o cidadão entender, por mais que queira «saber querer», o funcionamento da democracia portuguesa que se entrincheira na legitimidade que lhe advém do peso do voto cada quatro anos. Não basta ao cidadão poder dizer o que pensa, se é que pode pensar. Importa-lhe também saber que é ouvido. E ao deputado, não lhe basta possuir um poder político legitimado pelo voto. Precisa também da sensibilidade específica para sentir com o cidadão e os intangíveis valores que se encontram na base, sempre frágil, da comunidade humana e da democracia política. A inviolabilidade da vida humana é um deles. Sem ela perdem fundamento último os direitos humanos e a própria liberdade. E mal vai a saúde de um país quando a inviolabilidade da vida humana se subverte, subtilmente se transfigura e, na prática, se vai negando. Aprovado por maioria na Assembleia da República, diploma legislativo passou para o gabinete do Presidente da República e subiu ao Tribunal Constitucional que acaba de publicitar a decisão pela sua inconstitucionalidade. As razões são do domínio público e eu, jurista que não sou, mas cidadão que procura o «saber querer», pude ler que o mesmo tribunal acha que «O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância.». Sendo, portanto, inviolável a vida humana, é dever da Sociedade, do Estado, proceder em conformidade e criar as condições condignas para que sejam superadas as situações de extremo sofrimento, generalizando, inclusive, o serviço de cuidados paliativos. Julgava eu que sabia ler. Mas logo passei ao «nem sequer sei que não sei». No dia seguinte os média já anunciavam que o Tribunal Constitucional não fechara as portas a nova lei e que a eutanásia seria uma «questão de tempo». A comprová-lo estariam já as palavras da deputada do PS Isabel Moreira: «ficou claro que não há qualquer incompatibilidade entre a despenalização da eutanásia e a protecção dada pela Constituição à vida humana.» Ficou claro? Já não sei se hei-de dizer que «nem sequer sei que não sei ler» ou dizer «nem sequer sei que não sei nada».Soube-se, entretanto, que houve um primeiro relatório do Tribunal Constitucional em que se considerava que direito à vida é um «direito intangível», um «arquétipo civilizacional, cujo significado profundo projecta dimensões valorativas mais amplas», que se situam «além da vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos» e «desempenham uma função eminente no confronto de todos os outros princípios e regras e têm uma força jurídica própria.» Vou por aí. E estarei muito bem acompanhado.Socorro-me novamente, do nosso Francisco de Sanches: «Muitos cães podem fazer presa muito mais facilmente do que um só. Se depois de tantos, como dizes, e tão ilustres varões, eu, pequeno como sou, conseguir remover essa pedra, não te pareça isso extraordinário: também um dia um rato libertou dos laços um leão.»Seja o rato aquele povo simples e de um humanismo intuitivo e experiencial que tem a sensibilidade para ler o coração da vida. Ele entenderá bem que o verdadeiro «saber» tem de ser precedido do «saber querer». Ao menos, dêem-lhe voz, senhores deputados do meu país.Guarda, 18 de Março de 2021