Quando eu era pequena (quase me parece dizer: “quando os animais falavam”
…) o mês de Maio lá em casa era o “Mês de Maria”. Minha Mãe, sem grande ostentação nem publicidade, rezava o terço todas as noites a Nossa Senhora. Nunca percebi que fosse a uma Nossa Senhora em particular, mas, isso sim, um ato de filial devoção, de piedade familiar, de entrega sincera, mas discreta, de parte do peso da sua missão como mulher e mãe a Quem (e ela nisso era firmemente crente) tinha poder para a aliviar e encaminhar. Era no quartinho lá ao fundo do corredor, iluminado pela luz discreta duma janela alta que dava para outro quarto (esse com luz natural) em cujo parapeito, por ser mais largo, ela armara um pequeno oratório com as imagens sagradas da sua devoção. O vidro martelado da janela formava uma espécie de vitral, durante o dia, e á noite, com as luzes das duas velinhas e da lamparina de azeite que rodeavam votivamente a imagem de Nossa Senhora das Graças, reproduzia, no seu facetado, um halo luminoso verdadeiramente inspirador. Eu, miúda, sentava-me no meu banquinho de assento empalhado e ficava a vê-las – a minha senhora mãe da terra e a minha imaginada Mãe do Céu – enquanto as contas de vidro do terço iam pingando dos dedos lindos de minha mãe que os faziam balançar como pequeninos pêndulos mágicos. Minha mãe vivera as duas grandes guerras (com idades diferentes, obviamente, mas em ambas já com a noção do perigo e do sofrimento) e atravessara conflitos e preocupações familiares que a levavam a dar grande peso às preces pela paz. Era essa sempre a principal invocação que chegava no final da ladainha em louvor da Virgem Maria, uma entre as outras lindas invocações: mãe amável, rosa mística, torre de marfim, estrela da manhã, rainha da paz… E a fechar, cantava-se o “Avé de Fátima”, ou o “Salve Regina” ou também o “Miraculosa”. Quando digo –se, refiro-me às vozes femininas de quem nos acompanhava nas orações – as minhas primas-irmãs e as criadas que então nos serviam – porque o meu pai, que por vezes também estava connosco, era de tal modo desafinado que me parece seria capaz de antecipar, com o seu canto, a ascensão de Nossa Senhora aos Céus… E juro-vos que tenho saudades do tempo em que, apesar de estar apenas a cumprir um rito que, como em quase todos, de tão repetidos, nos vamos dispensando de atender ao significado do que vamos dizendo (ou cantando), tenho saudades, dizia, da candura de expressões dirigidas à Virgem e de como, na “Salve Rainha”, A invocávamos e nos ligávamos a Ela: ”Senhora nossa/senhora minha/vida, esperança, clemência e luz.” Ou, com Ela, nos abríamos à Esperança: “Avé Maria, Mãe de Jesus /És a nascente da eterna luz//De Ti Senhora nasce a Verdade/dás a Esperança à Humanidade”[…]“Em Ti o Homem nasce de novo/ dos povos todos nasce um só Povo!”. E a lindíssima cadência do refrão? :”Salve Rainha! Salve Rainha//Senhora minha, Mãe de Jesus!”, a acomodar cada um de nós num todo amável de família… E perdoem-me se insisto, mas penso que, na toada da popular “Miraculosa”, se partilha a mesma imagem de um amor luminoso que nos invade, nos acalenta e nos irmana os corações. Ora lembrem comigo a letra do cântico que por certo não esqueceram 1:”Miraculosa, Rainha dos Céus/ Sob o teu manto tecido de luz/ Faz com que a guerra se acabe na Terra/haja entre os homens a paz de Jesus”.
Pois não podia vir mais a propósito esta súplica: fora do templo amigo da nossa fé, para lá da porta que gostaríamos aberta à tolerância e à boa-vontade, os ares parecem envenenados, a morte campeia no sinistro triunfo de um Mal que pegou fogo. Fogo de acaso sinistro ou fogo de mãos criminosas, fogo real e mortífero ou então, mais insidioso e quase invisível, feito um rastilho de mal-fazer a minar vidas e corações, estamos a atravessar tempos em que precisamos de auxílio. De pedir à Rainha do Céu, que tudo vê nos corações, que nos ajude – em proporção justamente maior da parte Dela do que da nossa, frágeis que somos! Divulgado no fim-de-semana passado pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico em mensagens de Páscoa a líderes cristãos, foi afirmado que são assassinados todos os meses, por causa da sua fé, 300 cristãos. Estamos longe dos séculos XVI ou XVII em que o cristianismo foi, em demasiados casos, imposto pela violência. Hoje, a exclusão, com ou sem violência, em função de qualquer crença, é simplesmente inadmissível. O que se passou agora no Sri Lanka, o que se passa no Médio Oriente, no Norte de África, na Ásia, o não esquecido genocídio dos cristãos arménios, são exemplos, entre muitos mais, de que a comunhão com o martírio da Cruz continua válida e presente no destino dos cristãos. Mas há que acreditar também na Ressurreição, porque é essa a verdadeira luz da Páscoa para que não deixemos morrer a Alegria.
E aqui, meus amigos, não resisto a ir buscar a Vergílio Ferreira as palavras exactas daquilo que acho que, agora mais do que que nunca, nos cabe pôr em prática:
“Inventar a alegria. Ou estar atento à sua revelação. Mas é preciso merecê-la […] Esquecer um pouco talvez o ódio a fome a morte […] Inventar a alegria por sobre tudo isso ou estar limpo de todas as fezes da alma para que ela apareça. Porque há pássaros ainda a explicá-la e há a luz. E há o que simplesmente existe e é miraculoso no seu ser”.2
Maio, mês de Santa Maria do Céu; mês das Marias da Terra ( maria-rapaz; maria-vai-com-as-outras; maria-cachucha; maria-mijona; mariazinha-pé-de-salsa; Maria(s)-da-Fonte, Maria(s) Qualquer-Coisa…) e – porque não? – também da minha-prima-Maria que este mês completa os seus 90 anos, fortes fartos e formosos bem ao jeito da nossa cidade!
(Footnotes)
1 Se possuem computador aconselho a que o procurem na NET a partir do título e a ouçam cantada por Isabel Silvestre , de Manhouce (gravação de 1996). A “Salve Rainha” também está acessível na interpretação, creio, do Coro do Santuário de Fátima.
2 Excerto da obra “Escrever”, Bertrand Editora, Lisboa, 2001