José Augusto Garcia Marques(Juiz Conselheiro do STJ – Jubilado)
Quando eu ainda era miúdo passavam regularmente pela Guarda famílias de ciganos, que acampavam na mata. Os homens dedicavam o tempo ao amanho dos animais para a venda na próxima feira. As mulheres tratavam dos miúdos e liam a sina.
Eu sempre senti algum fascínio em poder acompanhar, na medida em que me era permitido, as previsões das ciganas e entretinha-me em perceber os augúrios de uma delas que, pela idade e porte (e pelo preço que cobrava) era vista e tida pelas outras e pela clientela como a mais competente e sagaz. Segurava com solenidade e firmeza a mão que se propunha avaliar, a palma virada para cima e algumas perguntas (aparentemente) inocentes pontuando uma conversa preparatória. Recolhida a informação básica necessária, detinha-se com longa atenção na linha da vida. Era talvez o ponto culminante. A expressão fechada do rosto adensava o suspense. Perguntada pelo(a) cliente ansioso(a), dizia umas banalidades sem se comprometer mas tentando colher dados úteis bem como captar a confiança da pessoa “diagnosticada”. Avançava prudentemente, como se quisesse apalpar o terreno, algumas insinuações a coberto da informação que tinha recolhido ao início. Compondo uma máscara de concentração, explicava que, para poder prosseguir o seu trabalho, precisava de mais tempo, o que requeria despesa suplementar. Com a curiosidade atiçada, o/a cliente não regateava o que lhe era pedido. Voltava por isso a tomar-lhe a mão, virando-a algumas vezes. Delicada no gesto mas determinada na atitude, examinava uma segunda linha que se cruzava com a linha da vida. Seguia-se uma cena teatral. Aquela segunda linha era, por certo, muito importante. Isso via-se até na indecisão da adivinha em dar explicações sobre o seu significado. Hesitava, o semblante alterado por um susto súbito. Parecia não suportar a responsabilidade da clarificação. Perante a insistência do/a cliente, acabava por explicar a razão das suas dúvidas: algo se desenhava ali de estranho que fazia adivinhar uma “coisa séria e grave” que aconteceria inesperadamente alguns anos depois, como o prenunciava o ponto de interseção da linha da vida pela linha cruzada. Desconhecia, porém, se se trataria de uma questão de doença, de acidente, ou se seria o resultado de um mau olhado, de uma praga rogada por uma rival, talvez mesmo de um “serviço” encomendado, ou – em alternativa – apenas o (normal) resultado da evolução de uma patologia interna. Instada sobre pormenores mais esclarecedores, dizia precisar de mais tempo e de uma mais longa reflexão. Porventura, de consultar até um “especialista” cujos serviços eram dispendiosos. Enfim, não fechando a porta à cliente, mostrava-se algo reticente em prosseguir a análise em curso.
Lembrei-me destes episódios quando me aconteceu sofrer pessoalmente uma linha de corte entre o passado e o que pensava vir a ser a normalidade de um futuro sossegado. Foi em 2010. Aliás, começou antes, com o aparecimento de um tumor maligno numa corda vocal. A voz deteriorava-se progressivamente e, um pouco contra a minha vontade, decidi jubilar-me após a excisão dessa corda vocal. Mas aconteceu o que eu temia: uma recidiva impôs uma laringectomia total.
Como se sabe, a laringectomia é uma cirurgia mutiladora que obriga a um longo período de internamento hospitalar. Dela resultam várias limitações, a mais grave das quais é a perda da voz. É fácil imaginar o sentimento de perda, o desânimo e a impotência daquele que se vê desprovido do principal instrumento de comunicação que é a fala. De facto, com a cirurgia perde-se esta ferramenta de comunicação, este instrumento de persuasão, de argumentação e até de … sedução. Depois da alta hospitalar, iniciei os tratamentos de radioterapia. Seguiu-se um período longo de fisioterapia e de terapia da fala.
Além dessas limitações, de certo modo e em parte recuperáveis, outras ocorrem como a perda do olfato e da capacidade de soprar e de cuspir. A mais difícil de suportar é a perda (ou redução acentuada) do cheiro. Deixei de ser capaz de sentir cheiros singelos que considerava particularmente agradáveis: o cheiro das flores, da maresia, da terra molhada, do cheiro a mosto, a erva cortada… Também deixei de poder nadar, desporto que praticava desde miúdo. Ainda hoje, 14 anos depois, sonho muitas vezes que estou a nadar numa piscina sem limites… Em contrapartida, tive alguns benefícios sensíveis: desapareceu a apneia do sono e a roncopatia de que sofria, para satisfação da minha mulher e para usufruir um sono mais descansado
E, com essa cirurgia, felizmente bem sucedida em virtude da perícia e dos cuidados dos médicos e do pessoal de enfermagem, comecei um novo período na minha vida. Após anos de trabalho árduo e meses de um “restauro” físico de grande calibre via-me com demasiado tempo livre e uma renascida vontade de o ocupar proficuamente. E assim, prossegui a colaboração quinzenal que, desde 2005 mantinha no semanário A GUARDA, passei a preferir a escrita de textos não jurídicos e a participar em ações de sensibilização e apoio junto de companheiros laringectomizados, tendo intervindo em sessões públicas de discussão dos problemas que nos afetam.
Durante os anos que se seguiram à laringectomia e tratamentos sucedâneos, aconteceram, na minha vida e da Família próxima, alguns motivos de felicidade: nasceu a minha neta Maria do Carmo, filha da Joana e do Pedro; o meu filho Pedro doutorou-se em Direito Penal, na Universidade Católica, onde ensina; a Ana tem vindo a aplicar, com mais tempo e entusiasmo, o dom para o desenho e para a pintura, além de continuar o seu trabalho profissional ligado ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em representação de Portugal; a minha Mulher escreveu e publicou dois livros, que não hesito em classificar como duas obras de muito valor literário e cultural; e, pasme-se, eu, que nunca fui muito dado à lavoura, embora goste do campo e descenda de Família de agricultores da Beira Alta, frequentei com aproveitamento um curso on line sobre Agricultura em Produção Integrada, o que me permitiu conhecer e conviver com pessoas que exploram por todo o País as mais diferentes formas de atividade agrícola. Entretanto, sem faltar alguma vez ao meu compromisso na entrega quinzenal do meu artigo para o semanário A GUARDA, publiquei dois livros de crónicas e memórias: “Palavras Guardadas”, com a maior parte dos textos ligados à recordação de “histórias que a vida me contou”; e, agora, este “O que dizer de…?, muito valorizado pelas ilustrações do Dr. Zé Pestana e com textos selecionados entre muitos, muitos mais.
Neste tempo acelerado, em que o número de anos para a esperança de vida parece não parar de crescer, a vida para cada um continua a ser uma interrogação vã sem resposta que se leia na palma de uma mão. E se, como se diz: “Os Deuses chamam cedo a si aqueles que mais amam”, a Vida, sobretudo se for brilhante, pode ser breve. Penso nisso ao recordar o prematuro desaparecimento da Senhora Dra. Joana Marques Vidal, a quem presto a mais comovida homenagem e a quem não deixarei de lembrar com reverência e gratidão, ciente de que uma pessoa só morre verdadeiramente quando, e se, o seu nome for esquecido.
Lisboa, 14 de julho de 2024