Os Jogos Olímpicos de Paris já são idos, e acaba de se realizar a abertura dos Paralímpicos na capital francesa com a presença de 168 delegações de participantes e cerca de 4.400 atletas com alguma disfuncionalidade, intelectual, visual, motora e paralisia cerebral. Mostrando ao mundo o muito que as pessoas conseguem fazer desde que lhes sejam dadas as condições adequadas, estes milhares de atletas são exemplo do que poderia ser uma sociedade inclusiva, acolhedora e pacífica. Foi vê-los entusiasmados e cheios de alegria a desfilarem na cerimónia de abertura deste acontecimento desportivo mundial que bem merecia maior mediatismo. De facto, pouca atenção lhe vem sendo dispensada nos meios portugueses de comunicação social, mesmo sabendo que neles participam 27 atletas portugueses de 10 modalidades. São eles já vencedores, independentemente das cobiçadas medalhas olímpicas.
Regressado às crónicas quinzenais, cheio ainda do ouvir dizer futebolístico mediático até à exaustão sobre o mercado de jogadores, volto ao futebol, convidando o leitor a olhar para aquilo que nele nos atrai e superando aquilo que nele nos possa repugnar. Porque o futebol é assim, tanto nos encanta como nos repugna. Será duro o verbo para muita gente, mas ele aqui fica lançado a este relvado de papel, preferindo, embora, que o futebol ficasse, sempre e somente, pelo encantamento.
Sim, o futebol também nos repugna e não sei se não poderá ser visto como manifestação de estupidez humana. É verdade que o futebol, mesmo o verdadeiro, aquele que é praticado no estádio com disciplina e cumprimento de regras após muito esforço, horas de treino e exercícios físicos, pode ser resumido a uma realidade ridícula na sua estupidez primária, sobretudo se fosse visto por extraterrestres que visitassem a nosso mundo humano. Era também ao que se poderia resumir uma conversa, a que não me pude furtar, ouvida numa viagem de comboio entre Setúbal e Lisboa, entre dois cavalheiros: vinte e dois imbecis vestidos ridiculamente de calções, com publicidade ambulante, a correr atrás de uma bola num espaço verde mais adequado à pastagem de animais herbívoros. Era o que dizia um deles com afinco e insistência enquanto o outro tentava matizar um pouco as palavras do primeiro. Mas cada um parecia ficar na sua, como acontece geralmente nas conversas entre adversários clubísticos em que se sobrepõe muito a paixão à razão, tal como se sobrepõe, tantas vezes, a repugnância ao encantamento. É assim, no futebol: repugnância e encantamento caminham a par da razão e da paixão, como a par caminham a ordem e a violência, as vitórias e as derrotas.
Quando, no início do EURO2024, escrevi uma insignificante crónica que dei o título “Futebóis numa espécie de diário caseiro”, recebi o telefonema de um amigo transmontano que me saudou dizendo que pretendia ajustar umas contas comigo. E falava com tal voz de irada autoridade moral que, no início, me chegou a inquietar. Depois, bem… O caso era de todo simples. Aquele grande transmontano confessava a sua admiração e desapontamento por eu ter gastado tempo e espaço do jornal com a ninharia de futebol. Não sei se fui suficiente convincente, mas lá foi abrandando o seu dizer depois de ele ter desabafado o muito que tinha para desabafar. Para ele o problema era o assunto. Simplesmente o assunto. Achava que o futebol não seria um tema que se coadunasse com a minha personalidade nem com a visão que eu tenho da sociedade. Escrever sobre futebol era para outros que não eu. Para mim haveria temas mais elevados.
O transmontano de Meles – a sua aldeia natal – teria alguma razão. Ele bem sabe que o futebol, como ele vem sendo tratado, não ocupa as minhas prioridades e interesses. Muito pelo contrário. O futebol jogado nas grandes competições já não é desporto. É negócio. É negócio dos bastidores que às vezes se transporta para o campo. Mais vezes, talvez, do que os incautos e ingénuos poderão imaginar. É o futebol mercantilizado de jogadores, patrocínios e marcas que será, talvez, o exemplo perfeito do capitalismo desumano que tanto nos enreda, mas de que vamos vivendo com a tranquilidade e comodismo.
O futebol virou empresa e negócio de milhões. Muitos milhões. Sempre, sempre tantos milhões que aquele som de milhões já passa nos nossos ouvidos como normalidade de uns cêntimos que não chegam para um pequeno pão de matar a fome a quem a tem neste mundo de gritantes desequilíbrios sociais. Que dizer, pois, dos negócios de compra e venda de jogadores em que os milhões e milhões voam de país em país, de clube em clube, de publicidade em publicidade num sistema que só pode ser obsceno para quem vive o dia-a-dia na miséria ou na fome?
E, com o negócio empresarial num mundo globalizado, tantas coisas que são alteradas naquilo que deveria ser o futebol verdadeiro. O futebol já não é o que era – ou como pensava eu que era – e até as análises que vão sendo feitas mediaticamente por comentadores encartados não são bem análises de futebol, mas, salvo raras e honrosas excepções que felizmente vai havendo, são marginalidades no encanto do jogo. São visões de clubite aguda retratadas com um futebolês digno de figurar no melhor quadro de honra da sociologia da linguagem.
Mas verdade é também que eu aprecio o futebol. Bom futebol, cá à minha maneira, daquele futebol que, sendo um jogo, mais parece um quadro de arte em movimento em que os jogadores são simultaneamente figurantes e artistas sob o aplauso entusiástico do público que, com bandeirolas coloridas, emoldura aquele rectângulo verde com linhas brancas rigorosamente traçadas em simetria perfeita. É ali que o quadro em movimento é pintado. E a «estupidez» do viajante de comboio pode esboroar-se perante a beleza do encontro.
Ao ver um bom jogo de futebol, lembro com frequência a discussão havida um dia numa aula de Filosofia e História da Arte. Se o futebol poderia ser chamado uma arte, era o assunto. Ali se conjugavam, íamos nós argumentando, a pintura, a escultura ou música e a dança. A questão levantada era um pouco provocatória por ser sabido que o Professor pouco ou nada admirava o futebol. Creio mesmo que nunca terá assistido a um jogo. Claro que não o convencemos da dimensão artística de um bom jogo de futebol e nós, seus alunos, continuámos a discussão nos meios académicos.
O que importa é perceber que as propriedades de qualquer realidade são sempre relacionais, particularmente num jogo de equipa como o futebol. O que dá vida e brilho à essência substantiva do jogo é a categoria da relação. Relação de harmonia na competição. E quando se altera a harmonia relacional ou se perde esta categoria substantiva, o futebol deixa de ser futebol para se transformar numa espécie de guerra entre jogadores e jogadores, entre adeptos e adeptos, entre adeptos e treinadores. A paixão supera então a razão e a dimensão empresarial supera a lúdica e a artística do jogo.
Há um poema atribuído a Virgílio [70 a.C. – 19 a.C.] onde o poeta latino descreve uma espécie de salada preparada pelo agricultor com a junção dos vários vegetais de cores diversas. Aí, escreve o poeta, «color est e pluribus unus», ou seja, «uma nova cor resulta de muitas outras cores». E Santo Agostinho [354-28 de Agosto de 430] termina um belíssimo texto sobre a amizade com estas palavras: «ex pluribus unum facere» (Confissões, IV, 8). Tem uma longa história a expressão «E pluribus unum» que corre mundo a servir de lema de várias instituições.
Porque o futebol que joguei foi sempre com amigos, é de Santo Agostinho que me lembro quando vejo uma equipa a jogar futebol. Com isso volto à categoria de relação que, negando o espírito individualista, sobreleva o movimento entre os jogadores a constituírem-se como quadro espacial móvel de uma equipa em que os membros se relacionam harmoniosamente. Aí sobressai a actividade associativa e a liberdade de cada um conjuga-se com a liberdade dos outros, como poderia, ou deveria ser, na Sociedade Humana onde, frequentemente, se sobreleva a liberdade individual com prejuízo da saúde da comunidade.
Guarda, Dia de Santo Agostinho, 28 de Agosto de 2024
António Salvado Morgado
morgado.salvado@gmail.com