DOIS DEDOS DE HISTÓRIA
Santarém, o principal centro urbano da sua região, foi uma próspera cidade durante o período de domínio muçulmano pois muito beneficiou da grande riqueza agrícola proporcionada pelo fértil vale atravessado pelo rio Tejo. Foi também este rio que proporcionou a boa navegabilidade, que facilmente a colocava em contacto com Lisboa e com o oceano Atlântico. Nessa época, as cidades de Santarém (Santarin) e Lisboa (Al-Usbuna) eram as mais importantes da província de Balata, famosa no islão peninsular pela alta produtividade dos seus campos e pela qualidade dos seus produtos.
Santarém esteve sob domínio muçulmano durante quatro séculos, sendo sede de uma kura (unidade administrativa islâmica) que pertenceu ao reino taifa de Badajoz (Batalyaws) quando o califado de Córdova se desmoronou.
Ao longo dos quatrocentos anos a cidade conheceu vários senhores, tendo sido tomada pelas forças cristãs que, contudo, seriam obrigadas a retirar-se por várias vezes, como sucedeu em 1093, devido à superioridade muçulmana. Mesmo sob domínio muçulmano, Santarém manteve-se separada do islão até à reconquista almorávida de 1111.
Em 1147, a cidade é tomada definitivamente pelos cristãos, comandados por D. Afonso Henriques. A partir dessa data, resiste a todas as tentativas almóadas para a reconquistar.
Como é sabido, o domínio muçulmano proporcionou desenvolvimento em várias áreas, desde a economia até á cultura. Um dos maiores contributos foi na área da literatura, concretamente da poesia.
Na Península Ibérica poderíamos citar alguns exemplos que ficaram na história da literatura árabe medieval, como al-Mutâmid, considerado um rei-poeta de Sevilha embora tenha nascido na Beja muçulmana.
Ibn Sara As-Santarini, um dos poetas mais famosos de Santarém, nasceu nesta cidade em meados do século XI, durante o domínio muçulmano.
Teve uma vida atribulada pois, devido à intervenção militar dos almorávidas, teve de abandonar Santarém para se refugiar em Sevilha. Durante este período de exílio também viveu noutras cidades importantes do Al-Andalus (conjunto dos domínios muçulmanos na Península Ibérica).
Este afastamento da terra natal forçou-o a dedicar-se a vários ofícios para se poder sustentar.
Foi, assim, copista e gramático, ofícios pouco rentáveis na época, mas não descurou a aproximação às personalidades mais poderosas e influentes do mundo muçulmano para obter o seu reconhecimento.
Conseguiu demonstrar as suas qualidades literárias, como prosador e poeta, perante os poderosos já que era um homem bastante culto, embora não hesitasse em servir-se da crítica e da sátira como meio de expressão literária.
O reconhecimento que conseguiu obter na época em que viveu, e que ainda hoje permanece, foi conseguido graças à poesia que se reveste de contemporaneidade e que confere uma riqueza ímpar à sua obra.
Segundo se sabe, terá vivido até aos 80 anos, tendo falecido, provavelmente, em Almeria, embora haja autores que defendam ter morrido na sua terra natal, Santarém, cerca de 1123.
A sua obra chegou até aos nossos dias, nomeadamente no livro “Poemas do fogo e outras casidas”.
Aqui ficam transcritos três dos seus poemas:
LARANJEIRA
São as laranjas brasas
que mostram sobre os ramos
a suas cores vivas
ou rostos que assomam
entre as verdes cortinas
dos palanquins?
São os ramos que se balouçam ou formas delicadas
por cujo amor sofro o que sofro?
Vejo a laranjeira que nos
mostra os seus frutos:
parecem lágrimas coloridas
de vermelho
pelos tormentos do amor.
Estão congeladas mas se fundissem seriam vinho.
Mãos mágicas moldaram a
terra para as formar.
São como bolas de cornalina
sobre ramos de topázio
e na mão de zéfiro há martelos
para as golpear.
Umas vezes beijamos os frutos
outras cheiramos o seu olor
e assim são alternadamente
rostos de donzelas
ou pomos de perfume.
A BRISA E A CHUVA
Buscas consolo no sopro do vento?
Em sua aragem há perfume e almíscar
Que até ti vem, ataviado de aromas,
Fiel mensageiro da tua doce amada.
O ar prova os trajes das nuvens
E escolhe um manto negro.
Uma nuvem prenhe de chuva
Acena ao jardim, saúda-o
Vertendo lágrimas nas risonhas flores.
A Terra apressa a nuvem
Para que lhe acabe o manto.
E a nuvem com uma mão
Entretece fios de chuva
E com outra vai-o enfeitando
Com um bordado de flores.
OS VIAJANTES DA NOITE
MURMURAM O TEU NOME
os viajantes da noite murmuram
o teu nome
e as areias do deserto derramam
sobre quem te pisa
o perfume do almíscar.
e da formusura da invocação
sabemos da beleza do invocado
como pelo verdor das margens
se pressente o rio.