O MÊS QUE Aí VEM…
Sou um homem regrado. Beirão, conservador nos costumes, respeitador da dignidade e dos direitos dos outros, originário de uma família da média burguesia rural, educado por pais trabalhadores, honestos e poupados, vivi na Guarda até aos 14 anos. Chegado a Lisboa, encontrei um meio diferente ao qual me adaptei sem dificuldade. Fui um estudante cumpridor e tive a felicidade de fazer o serviço militar na Marinha com uma comissão de serviço no Comando Naval de Angola. Fiz a minha vida profissional ao longo de 40 anos na carreira que escolhi. Sempre respeitei o trabalho e dediquei muito pouco tempo a lazeres ou a convívios sociais. Nunca me senti à vontade no meio ultra-sofisticado dos “tios” e “tias” da capital onde as conversas giravam invariavelmente em torno de trens de vida topo de gama, viagens pelo mundo, idas à neve ou às praias exóticas em margens de outros mares longínquos.Vivo há quase 50 anos no mesmo andar que comprei quando casámos. E se bem que não fosse grande frequentador de transportes coletivos, tive sempre carros utilitários que na maioria me duraram mais de dez anos cada. Não me queixo (e aqui para nós, até gosto…) do dia a dia simples que tenho vivido, porque nas minhas escolhas pude sempre respeitar a minha maneira de ser – uma felicidade que nem a todos cabe… E tentámos, minha mulher e eu, criar os filhos nesta mesma forma de viver.Como se vê, sou conservador por natureza e educação, mas sou também aberto às questões sociais, sempre respeitando aqueles que trabalham com afinco e, independentemente das suas escolhas ideológicas ou partidárias, se norteiam pelo sentido do serviço público e do bem comum, com dedicação e seriedade. Não tenho filiação partidária pelo que, embora rejeite opções ideológicas radicais, não estou vinculado a dar sempre o meu voto ao mesmo partido político ou a um determinado candidato individual. Tento orientar-me pelo exemplo, a coerência e o mérito de quem concorre a eleições, considerar a obra feita se a houver, assim optando por quem me pareça ser a melhor escolha para o País. Como os meus leitores habituais já devem ter constatado, procuro manter-me informado e não desdenho dar a minha opinião, manifestar os meus receios, fazer as minhas críticas ou tecer os meus louvores a quem – e quando – esteja na circunstância de ser avaliado ou escrutinado. Nisso, orgulho-me de não dever a cabeça a ninguém. E por isso também, posso afirmar que me revolta a mentira e a corrupção me indigna. E se é verdade que não gosto de quem parece ter nascido com uma estrelinha na testa e se julga com direito natural a privilégios , benesses e mercês, ainda tolero menos os autocratas que vivem da mentira e cultivam um ego hipertrofiado, pondo o seu egocentrismo e a sua ambição à frente e acima de tudo e de todos.Ora coube aos dias que vivemos encontrarmos, vivo e atuante, um dos exemplos mais perfeitos e acabados deste tipo de autocrata: impante de pose e poder, ignorante e inculto, desprezando todos os que lhe fazem frente, capaz das maiores enormidades e incapaz de um gesto de humanidade e respeito pelo seu semelhante, ei-lo que surge, no mais improvável dos séculos e dos países: Donald Trump!Como escreveu Clara Ferreira Alves, depois do “Trump versus Biden”, “o arsenal palavroso (de Trump) é uma amálgama de ofensas, provocações e afirmações de potestade, quase todas falsas. Assim, o respeito está ausente e o caos garantido, e caos é o pântano onde floresce esta planta carnívora” (cfr. “Trump, o Touro Enraivecido”, in Revista Expresso, de 3 de outubro último). Ao longo dos meses já decorridos da pandemia, as afirmações falsas e sem a mínima base científica que foi produzindo, os maus exemplos que multiplicou tornam-no responsável do dramático saldo de vítimas que atingiram os EUA. E, nas palavras de Michelle Obama, Trump é racista e semeia o medo e a confusão. Quando ele mencionou os Proud Boys, um grupo de supremacistas brancos de extrema-direita, “foi para os incitar à violência armada, avisando-os para se prepararem” (…) “Se a eleição correr mal a Trump, [ele] não hesitará em atiçar as milícias da igreja de fiéis e em desafiar a “lei e ordem” (Clara Ferreira Alves, loc. cit.)”. Perguntamo-nos, atónitos, como é possível que um Presidente dos Estados Unidos – que sempre se orgulharam de defender a democracia e se arrogaram o direito de “policiar” o mundo – ameace não assegurar uma transição pacífica para a nova Administração se Biden vencer, legal e legitimamente, as eleições de 3 de novembro?!Mas, se “lá por fora“ o quadro é este, “por cá”, o “mês que aí vem” não deixa de ser, à sua escala, evidentemente, um rotundo ponto de interrogação.Como é que a COVID vai evoluir em Portugal e no mundo? Os números de contágios e óbitos vão continuar a subir? Os lares de idosos passarão a merecer melhores cuidados e as mortes dos mais velhos uma atenção mais sensível por parte dos media?E, em relação ao sistema político, será verdade que o Governo, infatigável, está a desenvolver a sua rede de fidelidades, expurgando os corpos incómodos? Eis aqui um busílis difícil de engolir. Voltando atrás, recorde-se o anterior caso (agora ardilosamente referido por António Costa) da não recondução de Joana Marques Vidal. Para mim, na verdade verdadeira do que realmente significou ele constituiu uma mancha na governação, não beneficiou o interesse nacional e maculou o mandato presidencial. Segue-se agora o caso da substituição do Presidente do Tribunal de Contas, processo em cujo desfecho esteve também obviamente envolvido o Presidente da República. O momento não podia ser mais infeliz; as justificações são esfarrapadas e nada convincentes, colhendo, embora, o estranho beneplácito do líder do PSD em relação à personalidade escolhida pelo Governo e pelo P.R. para passar a presidir ao TdC. Enfim, para utilizar dois títulos do Público de 6 de outubro, será que “quem se meter com o PS leva?” (Manuel Carvalho, editorial) e, em face dos exemplos elencados pelo articulista, será que estamos perante “a expansão da República Socialista Portuguesa?” (João Miguel Tavares, última página)?A não recondução do presidente do Tribunal de Contas, Conselheiro Vítor Caldeira, (magistrado com invulgar currículo até a nível da União Europeia de cujo Tribunal de Contas foi também prestigiado presidente) depois de o TdC ter alertado para o facto de a simplificação do regime de contratação pública ser “suscetível de contribuir para o crescimento de práticas ilícitas de conluio, cartelização e até mesmo de corrupção na construção pública” (sublinhado meu), essa não recondução constitui um péssimo sinal.Aqui chegado, só me lembra Amália e os versos que com tanto sentimento cantava:“Sabe-se lá, quando a sorte é boa ou má / Sabe-se lá, amanhã o que virá? […] Ninguém sabe, quando nasce, p’ró que nasce uma pessoa…” Lisboa, 7 de outubro de 2020