Outubro
O Outono começou há pouco mais de uma semana. Mas é hoje, dia 1 de outubro, que mudamos a folha do calendário e, ao fazê-lo, ganhamos consciência de que o Verão, as férias e este SOL, assim gloriosos, só voltarão no ano que vem. Agora é tempo de se pensar no frio e nos agasalhos; é o tempo cinzento dos aguaceiros e da chuva, do confinamento crescente em casa para os que somos mais velhos.Assistimos, com preocupação, aos sinais da chegada de uma segunda vaga da pandemia, ao mesmo tempo que nos interrogamos se, por uma vez, os fundos que as instituições europeias nos atribuíram vão ser bem aplicados: com planeamento, critério e honestidade. Para investimento estratégico e em tempo e não para tapar buracos ou satisfazer reivindicações deslocadas de clientelas partidárias. O que se diria “com honra e proveito” para o País e os portugueses.É tempo também de nos perguntarmos sobre os porquês da súbita e inesperada falta de lucidez de um político tão hábil, experiente e frio como é António Costa. O que é que passou pela cabeça do Primeiro-Ministro (PM), depois de voltar de férias (terá apanhado algum vírus espúrio ou relaxado em demasia?) para cometer os erros imperdoáveis, quase infantis, a que temos vindo a assistir?Já não falo do ataque descabelado à Ordem dos Médicos nem da declaração em off no fim da entrevista ao “Expresso”. Mas confesso que fiquei chocado com a crise artificial e desnecessária com que ameaçou quando convocou os partidos à esquerda do PS para retomarem o espírito da geringonça, com vista à aprovação do OE para 2021, ao mesmo tempo que proclamava que, se precisasse da ajuda do PSD para a viabilização do Orçamento, isso corresponderia à imediata e automática queda do Governo. Optou por uma estratégia de afrontamento e de rutura com o principal partido da oposição em vez de privilegiar uma solução de diálogo e de cooperação. Quem ficou a rir-se no meio deste cenário? Pois foi André Ventura e o “Chega” cujo eleitorado vai crescer inevitavelmente …Será que António Costa sentiu a necessidade de fazer prova de um inquestionável espírito e de uma inabalável prática de esquerda, capaz de travar o crescimento da linha mais radical dentro do seu partido?Mas, logo a seguir, veio a inacreditável decisão de fazer parte da lista para a Comissão de Honra de Luís Filipe Vieira para as eleições no SLB. Decisão em que foi acompanhado pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina, e ainda pelo Presidente da Câmara do Seixal, onde o Benfica treina e tem a sua Academia.Já tudo se disse sobre esta decisão do PM. Numa unanimidade raramente vista, foi justamente criticado por esse gesto, revelador da promiscuidade entre a Política e o Futebol, agravado pela personalidade e pelos telhados de vidro da figura apoiada, devedor à Banca de largas centenas de milhões de euros e atulhado em histórias de processos judiciais que têm provocado contestação crescente à sua atividade e caráter dentro do próprio Clube e junto de indefetíveis benfiquistas.A verdade é que aconteceu o que se previa. Muito poucos dias depois do anúncio do apoio à recandidatura do controverso presidente do Benfica, o mesmo foi abrangido pela acusação no processo LEX, com a imputação da prática de um crime. A implicação gravíssima de alguns juízes desembargadores, em particular com o triste protagonismo de Rui Rangel, revela também a já conhecida promiscuidade entre o mundo do futebol e o meio judicial. Como escreveu Paulo Rangel (cfr. “Público” de 22 de setembro, pág. 8), «a circunstância infeliz e funesta de António Costa se ter deixado associar à candidatura futebolística de um dos arguidos é mais um ingrediente que alimenta a desconfiança de um suposto triângulo “justiça-futebol-política”».Perante o clamor geral e o prenúncio anunciado da discordância do Presidente da República, Luís Filipe Vieira, com a sobranceria de um todo-poderoso, intocável e inamovível, anunciou que tinha retirado da lista da Comissão de Honra o 1º Ministro, os Presidentes das Câmaras Municipais de Lisboa e do Seixal e todos os restantes políticos que lhe tinham manifestado aquele desígnio. O puríssimo Vieira expulsava da sua impoluta convivência os “leprosos” desse grupo infecto que são “os políticos”!?!!! Perdoe-se-me a expressão, mas é preciso ter “lata”! Assim foi, formalmente, posto um ponto final – bastante canhestro, convenhamos… – neste triste conúbio entre António Costa e o Presidente do Sport Lisboa e Benfica. E palpita-me que só para obedecer a um sinal de forte desaprovação por parte do Presidente da República que deve ter-se sentido no papel de um mestre escola à antiga a pôr umas orelhas de burro aos alunos incompetentes! Parece que temos uma vocação inata para a controvérsia, para confundirmos liberdade de escolha com voluntarismo e arrogância, espírito de grupo com nepotismo (por vezes do mais descarado e incontido), bem comum e serviço público com a sumarenta gestão imbuída do sentimento de “a quinta é nossa”! E tudo isto apanágio de uma casta de intocáveis, provavelmente nascidos com uma estrelinha na testa que os sagra “senhores do mundo” e lhes assegura uma passagem pelos trilhos do poder incólume e gratificante. Talvez fosse tempo de os avisar que tal estado pseudo-edénico não dura sempre, que não há intocáveis eternos e que do mais alto se cai com maior estrondo e prejuízo. Das histórias acima relatadas se retira lição atualizada. E num país como o nosso que tarda mas não esquece, é de relembrar que nem todos os trilhos são passadeiras vermelhas e, quanto mais não seja pela mais elementar salvaguarda ou, se quisermos, salutar prudência, é bom que se coibam de pisar certos riscos (encarnados ou outros que, mesmo dentro de campo, dão lugar a duras penalidades…). Espero que a Costa e outros lhes tenha servido de lição e que, por uma vez e a título de simples ilustração, lembrem Rui Rio que, neste particular das relações entre “política” e “futebol”, deu lições exemplares de distanciamento e ética. Contra tudo e contra alguns!E pegando nesta palavra “alguns” veio-me à ideia que nem sempre, como aqui, significa “exclusão”, “diferenciação negativa pela redução, pela separação”. Há muitos casos em que “alguns” são aqueles que mais merecem o nosso respeito e gratidão e os dias de aflição que atravessamos são disso exemplo. Por isso, quero terminar com uma citação que resume o meu sentimento sobre esse facto, retirada dum texto de Vitor Balenciano1: “Se existiu momento em que os privilegiados tiveram oportunidade de constatar o quão dependemos uns dos outros foi este, através da atividade dos muitos daqueles que assumiram riscos enquanto outros estavam protegidos. Se não existir um pingo de humildade agora, será quando?”Praia das Maçãs, 23.09.2020(Footnotes)1 “A arrogância meritocrática”, in PÚBLICO, P2, 20.09.2020, pág.2