A Guarda, cidade, tem o sabor do granito? Todos os dias olho para a Guarda. Olho a cidade e percorro algumas das principais artérias.
Todos os dias. E dou comigo a pensar. E dou comigo num e noutro lamento. Lamentos muitos de alma de um cidadão da Guarda, nascido numa aldeia do concelho também ela feita de granito. Lamentos muitos a lembrarem as primeiras imagens que tive da minha cidade concelhia e da cidade minha que escolhi para lhe devotar os melhores e maiores anos da minha vida profissional.
Se a região é marcada pelo granito, como se lê e se ouve, então esta minha cidade de montanha deveria ter a cor do granito. E tinha, em geral, na construção de outras eras. Das suas muralhas, das suas portas antigas, da sua catedral que possui a cor da fortaleza que vence tempos. E ela lá está a resistir como sentinela que vigia e alerta para malfeitorias que se podem abater sobre a cidade sanchina. E têm abatido. A catedral resiste, mas os habitantes da Guarda, ou os seus arquitectos e munícipes, parecem não ter tido a criatividade suficiente para conjugarem a requalificação urbana com a identidade que a cidade foi construindo ao longo da sua história. E que lhe dava força e energia. E que a fazia «forte». E o que fazia dela o que era e já não é, de todo.
Não, não se trata de simples nostalgia, como se poderá julgar. Trata-se antes de pensar que se poderia conjugar modernidade e tradição e não ceder a facilidades de ocasião ou à pressão de obscuras especulações. Não, também não estou a pensar no designado «centro histórico», onde a protecção parece conjugar-se mal com as possibilidades de recuperação que, se bem me lembro e se estou bem informado, já passou por vários programas. Penso no que se passa para além do «centro histórico», mas que ainda está no centro da história da cidade.
No passado mês de Julho, entre 26 e 31 a Guarda acolheu um grande número de jovens peregrinos a caminho de Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude. E os meios de comunicação social foram dando informações sobre a proveniência daqueles que ficaram na cidade: Colômbia, Holanda, França, Equador, Estados Unidos da América, México, Moçambique, Filipinas, Brasil, Polónia e Guiné-Bissau. Uma espécie de globo terrestre concentrado aqui, no alto da montanha beirã, na nossa granítica cidade, que parece abeirar-se da felicidade do céu azul, onde se projectam as torres e o rendilhado da Catedral, emolduradas, quantas vezes, por nuvens fugidias da cor da neve. É então que ela mostra com maior esplendor toda aquela grandeza granítica, tão pesada que se cola à terra, como tão leve, levezinha, que toca a leveza das asas dos anjos.
Não sei se foi pela fortaleza granítica da Sé ou se foi pela altitude da cidade que aqueles jovens peregrinos escolheram a Guarda para iniciarem as jornadas de juventude em direcção a Lisboa. Mas sei que alguns ficaram encantados com a imponência granítica da Catedral, onde «apetece rezar», nas palavras de jovens da Guiné Bissau. E foram eles que, já pela noite adentro, enquanto descíamos a rua em direcção ao Bonfim, desviaram a conversa para o granito. Não era só a Catedral construída de granito. O granito também ali estava em portas e janelas e nas ruas e passeios que íamos pisando.
– O que é isto que brilha no chão? – perguntou um deles apontando para o brilho das pequenas micas que se enriqueciam de prata na base de um candeeiro público.
Lá tive que me socorrer dos meus estudos antigos em que aprendi que o granito era constituído, principalmente, por três minerais: quartzo, feldspato e mica, e que a mica era a parte mais brilhante. Com a conversa cheguei a acrescentar que o granito ajudava a compreender o carácter «forte» da cidade como vem sendo cognominada.
Nessa noite adormeci a percorrer o alto da cidade e a homenagear aqueles jovens da Guiné Bissau que me ensinaram a redescobrir com maior fulgor o granito na mais alta cidade de Portugal. E até os grãos de mica a brilhar nos passeios. Curioso, ou talvez não tanto: milhares de vezes terei eu passado naquele passeio a pisar o brilho daqueles grãos de mica sem nunca os ter visto assim, brilhantes, como os viram aqueles jovens. Verdadeiramente somos cegos, quantas vezes, para aquilo que está mais próximo e sonhamos ir descobrir as lonjuras. E lamento a minha cegueira.
E outro lamento ainda quando vejo derrubar casas de antanho para darem lugar a prédios cimentados de gosto duvidoso e de enquadramento problemático. Poderiam essas casas ser simples e não possuírem valor arquitectónico de primeira grandeza – que não exibiam, de facto, em muitos casos -, mas possuíam nas portadas, varandas e janelas o granito de sinal beirão a dar-lhes cor local. E dar-lhe, na sua simplicidade, a beleza granítica que adorna a história e cultura da Guarda.
Lamento a acção dos arquitectos que poderiam ser os primeiros a salvaguardar a identidade local da terra. E sei que eles podem fazer “milagres”, como o comprovam exemplos que vamos observando aqui e ali. Mais ali do que aqui. Bem sei que lhe é mais fácil desenhar um prédio de raiz do que delineá-lo salvaguardando paredes, janelas e portadas antigas. Mas a facilidade pode ser inimiga da qualidade. E, neste caso, a qualidade conjuga-se com a vida, a história, a cultura. Encontramos alguns bons exemplos, é verdade, mas eles serão excepção. A regra parece ser outra. E ela já vem de longe. E assim a cidade foi e vai perdendo caracterização identitária e unidade estética.
Fomos esquecendo aquilo que todos vamos sabendo. A imagem de uma cidade passa pelo civismo bairrista dos seus munícipes e pela visão estratégica dos autarcas e seus assessores aos quais não pode faltar visão humanística, histórica e cultural.
Utilizo frequentemente o comboio com partida e chegada na estação da Guarda, como o utilizei antes de aquele espaço ser completamente reformulado. Certamente os espaços de outrora estavam depauperados, eram inoperacionais e pouco adequados. Sem dúvida. A Guarda precisava de um edifício mais digno? Certamente. E ele veio há anos. E ainda bem. Mas nunca entendi por que razão não foi salvaguardada a fachada do edifício antigo da estação. Parece que os responsáveis até terão pensado em tal já que, para pretensa salvaguarda da história e sossego da consciência, instalaram um painel de azulejos com a imagem da fachada antiga. Olho para o edifício moderno, que até aprecio. De granito é ele, mas já não é o granito serrano. Aquele painel dá comigo num lamento. Julgo que aquela fachada antiga, mesmo sem grande valor arquitectónico como possuem outras que encontramos por esse Portugal fora, poderia ter sido salvaguardada. Por que razão não se seguiu esse caminho, não sei. Como também ignoro quem teve aqui o poder de decisão. Não sei mesmo se a autarquia foi ouvida.
Vamos ao presente. Seja, só para exemplo, uma visita à Rua Batalha Reis. Ali se encontra uma escultura do espanhol Vateriano Hernández intitulada “Escrita no Granito”. Instalada mesmo em frente da casa onde viveu Nuno de Montemor, a escultura, criada num dos simpósios internacionais de arte contemporânea da Guarda, pretende homenagear este escritor e poeta. A casa do escritor é, ou era, uma de quatro ou cinco casas iguais. É verdade que elas não possuíam especial valor arquitectónico, mas eram de cantaria granítica que importaria salvaguardar e enquadrar numa recuperação cuidada. A casa de Nuno de Montemor, sinalizada com uma placa evocativa do centenário do seu nascimento, ainda não foi demolida como outras de cujo espaço fugiu já o granito e onde se vai erguendo a estrutura de novos edifícios. Mas ela está também condenada, a julgar pela imagem do projecto exibida numa parede local.
Se ali, naquela casa, muito da obra de Nuno de Montemor foi sonhada e “Escrita no Granito”, com o granito demolido ela está condenada. Granito bem pesado para a escrita ficar bem enterrada para sempre.
A escultura da frente da casa do poeta, romancista e contista, não terá especial beleza, mas nela já vai enferrujando a caneta do escritor. Até parece que o escultor, não sendo embora da Guarda, já estaria a ler nas estrelas da Serra o destino daquelas casas de granito. E a de Nuno de Montemor também. E, com ela, muito da sua memória.
Guarda, 16 de janeiro de 2024