*José Augusto Garcia Marques – Juiz Conselheiro do STJ (Jubilado)
Corria este nosso verão se não ameno pelo menos amistoso quando setembro trouxe condições meteorológicas altamente agressivas e propícias a incêndios: muito calor, amplitudes térmicas relativamente diminutas entre os dias e as noites, vento forte, com rajadas e frequentes mudanças de direção, pouca humidade, florestas com massa combustível muito seca, vento variável com o consequente aparecimento de focos de fogo em áreas imprevisíveis e relativamente longínquas. Apesar dos esforços hercúleos dos operacionais envolvidos no combate aos muitos incêndios simultâneos que aterrorizaram o norte e o centro do País, apesar do auxílio prestado em meios aéreos – chegámos a dispor de oito aviões de combate aos fogos, cedidos pela Espanha, França e Itália -, ao abrigo do mecanismo europeu de proteção civil e das ajudas altamente empenhadas, prestadas por parte da Espanha e do Reino de Marrocos, nestes casos nos termos das convenções bilaterais celebradas com esses Países, e de uma mobilização invulgarmente robusta e motivada, a nível nacional, de meios humanos e mecânicos, a verdade é que não foi possível responder com êxito à deflagração das muitas centenas de ignições ocorridas nos três primeiros dias de fogo devastador – 200 ignições que, durante a noite dramática de 15 para 16 do corrente, deflagraram estranhamente num grande número de concelhos próximos ou mesmo contíguos dos distritos de Aveiro, Viseu, Vila Real, Porto e a norte do Porto. Não escaparam Mangualde, Águeda, Albergaria-a-Velha, Sever do Vouga, Oliveira de Azeméis e Paços de Ferreira, todos centros industriais economicamente relevantes, que sofreram dias e noites de terror, numa defesa extenuante dos seus bens e, em última instância, tão somente dos seus habitantes. Os bombeiros não fugiram à luta titânica que tinham pela frente – quatro tombaram vítimas do seu empenho. Entretanto, arderam casas e empresas, v.g., nos concelhos de Águeda e Castro Daire. Em Arouca arderam dois quilómetros dos passadiços sobre o Rio Paiva. Só a preciosa ajuda da chuva pôs fim aos últimos incêndios ainda subsistentes.
Numa primeira abordagem fala-se em 125.000 hectares de área ardida nestes quatro dias. Só num concelho (em Castro Daire) arderam trinta mil hectares…
Tenha-se presente que, nestes terríveis incêndios da última semana foram afetadas zonas industriais, centros economicamente ricos e não tanto áreas rurais como é mais frequente nos incêndios florestais. O coração industrial do País foi atingido! Vejamos as particularidades no setor de alguns dos principais concelhos mais afetados: Mangualde é um importante centro de montagem automóvel. A empresa STELLANTIS, ali sedeada, teve sérios prejuízos, como consequência, por exemplo, da necessidade de os camiões de transporte das peças e acessórios indispensáveis às montagens ter de ser desviado, com custos suplementares significativamente elevados; Águeda é um centro industrial onde avultam a metalomecânica e o fabrico de bicicletas; em Albergaria-a Velha destaca-se a indústria do papel e a celulose – as árvores arderam, além de casas e negócios!; Sever do Vouga e Oliveira de Azeméis, vivem da madeira e do calçado, respetivamente; Paços de Ferreira é justamente conhecida como a capital do móvel – onde está a madeira agora? A gravidade da situação dos incêndios levou o Governo a decretar “situação de calamidade”.
Falou-se muito – fala-se sempre – em fogo posto. O Primeiro-ministro, impressionado pelo elevadíssimo número das ignições noturnas, numa reação voluntarista mas (talvez) pouco pensada, produzida numa conferência de imprensa realizada na passada 3ª feira, falou mesmo em “interesses” que “sobrevoam” os incêndios florestais e, sem especificar de que interesses se tratava, garantiu que o governo seria implacável contra os “criminosos” que disse estarem por detrás de grande parte das ignições. Todavia, três inspetores da Polícia Judiciária e um militar da GNR, todos especializados na investigação criminal aos incêndios florestais, contrariaram as afirmações do 1º Ministro. Ao EXPRESSO, edição de 20 de setembro, as referidas fontes policiais afirmaram sobre esta problemática: “Não temos prova de haver incendiários que tenham cometido estes crimes por interesses economicamente escondidos. (…) As declarações do primeiro-ministro não estão fundadas em factos diretos ou relatórios oficiais”. “Muitas destas ignições são simplesmente projeções que têm origem num outro local afetado pelas chamas e que acabam por dar origem a um novo incêndio, por vezes iniciado a grande distância”, foi outra opinião avançada por um perito.
Mas claro está que não se pode negar a evidência do facto de práticas repetidas de “fogo posto”. Todos os verões, na época dos incêndios, repetem-se três teses sobre as causas da ocorrência dessa grave prática criminosa. Os autores dos grandes incêndios florestais poderão ser (a) pirómanos que colocam o fogo durante a noite, em vários pontos da floresta, para dificultar a ação dos operacionais no terreno; (b) pirómanos associados a madeireiros, cujos objetivos consistem em comprar a madeira queimada por preços mais baixos; (c) associação com empresas de materiais de construção civil, que lucram com os incêndios. Para maior desenvolvimento, cf. Hugo Franco, EXPRESSO; de 20-09-2024, pág 5.
Segundo especialistas reputados nesta matéria estes três cenários não passam de “mera teoria da conspiração”. Optam por entender que os incendiários florestais são movidos por um espírito de imitação. Trata-se de incendiários “copycat”. Muitos deles querem pôr as suas aldeias no mapa. Estes imitadores veem os aviões e os grupos de operacionais a operar no combate às chamas, em cenários que têm tanto de espetacular como de infernal e ficam excitados pelo que as imagens lhes trazem. Num país frágil (David Pontes, “Público”, 17 de setembro, pág.8), a excitação, aliada a problemas mentais, torna-os agentes do mal, imbuídos do espírito de destruição do fogo. Talvez… E nessa linha, por que não tomar em consideração o terrível poder das transmissões televisivas, em que , durante a época de incêndios, inundam os ecrãs de labaredas enraivecidas trepando pelas árvores mais altas, bailando e lambendo por tudo quanto é sítio, rematando a reportagem com imagens sinistras de cenários ardidos, como se tudo não passasse de uma série noutro planeta…”o que se passa na informação televisiva, cada vez que há grandes incêndios, é de uma grave irresponsabilidade social: há estudos que mostram o efeito mimético que tem, junto de algumas pessoas perturbadas, o ver chamas na televisão” (afirma António Marujo, PÚBLICO de 19 de setembro, pág. 7).
Já não nos basta o horror bélico que nos cai no prato a todas as horas, das imagens das outras frentes de fogo que as guerras da Ucrânia e do Médio Oriente nos trazem todos os dias! Sem ironia, confesso que prefiro, para esta força da natureza, a definição de “fogo que arde sem se ver” que Camões dava para o AMOR.
Lisboa, 20 de setembro de 2024