Esta palavra “postura”

É uma palavra da moda, a «postura».

Conheci a palavra em criança, bem em criança, na casa de meus pais. E, se bem me lembro, na aldeia, aldeia simples de gente simples, trabalhadora, acolhedora e solidária, todos a conheciam e a utilizavam.
Em todas as casas, ou na maioria pelo menos, haveria uma ou mais galinhas, as pitas, muitas vezes acompanhadas de um galo a anunciar a madrugada. Galinhas com penas de todas as cores, do branco ao preto, passando pelas cores do arco-íris e outras inomináveis. Passeavam-se nas ruas ou encaminhavam-se para os soitos e campos agrícolas próximos em pousio. Ali procuravam, em total liberdade e na companhia das galinhas vizinhas, o alimento diário. E, quando o Sol começava a declinar, cada uma, ou cada grupo, sem qualquer engano, recolhia ao pátio dos donos onde as esperava uma espécie de sobremesa feita de couves ou de farelo amassado. E elas recompensavam os donos com ovos frescos de gema mais amarela que o sol, postos num ninho, aprimorado ou não tanto, em que se acocoravam para a postura. E não deixavam de cantar, depois, a anunciar a oferta para abrilhantar, de iguarias, a mesa dos donos. Ou, então, quando em postura da muita abundância da galinha pedrês, os ovos eram recolhidos e aconchegados numa cesta de verga para serem vendidos na matemática de base doze, ou seja, à dúzia, como ainda hoje acontece nos modernizados centros de comércio. Porque a subsistência da terra também passava pelos ovos vendidos a compradoras ambulantes. A procura não faltava e a economia doméstica assim o exigia.
Era assim a avicultura de antanho com as galinhas em postura em conformidade com o calendário e horário biológico. Sim, porque havia os tempos da postura, nas épocas dos anos e nas horas dos dias. A avicultura era tão natural, como natural é a natureza com os ciclos de vida. Depois, as galinhas em liberdade a debicar no campo, salvo algumas excepções, foram desaparecendo, vieram os aviários industriais e as pobres galinhas foram forçadas a viver e alimentar-se em alinhados compartimentos exíguos e a acelerar a postura com meios técnicos de luz e som.
Com estes artificialismos da modernidade, os ovos multiplicaram-se no mercado, mas perderam a qualidade e a cor original da natureza. A seu modo, são ovos artificiais, dir-se-ia, se não fosse também um artificialismo da linguagem. E a canja…, a canja feita com estas galinhas de aviário, já não é canja. É um caldo insípido e sensaborão só apreciado por quem nunca saboreou aquelas canjinhas de odor e sabor sem par, feitas numa panela de ferro à lareira, com aquelas pitas criadas na liberdade do campo.
A postura era, outrora, a postura destas galinhas. Das galinhas e de outras aves que nidificavam, como eram os passarinhos do campo. Foi assim que, cedo, aprendi a conhecer a palavra «postura», e fui deixando de ouvir tal palavra até que, desde há uns tempos, tempos recentes mas indefinidos, a «postura» foi surgindo, mansamente primeiro, e com toda a força depois, nos meios de comunicação de ler, ouvir e ver.
Mas a moda da utilização da palavra “postura” nada tem a ver com a postura das galinhas, menos ainda das pitas pedreses. Quando ouço ou leio, aqui e ali, quase diariamente a palavra “postura”, ela pretende significar uma opinião, um parecer, uma atitude, um posicionamento do espírito, uma perspectiva mental e um modo de pensar ou de proceder. Enfim, um ponto de vista sobre qualquer assunto, sobretudo da vida social.
A “postura” assim entendida anda por aí nos escritos e nos dizeres da vida pensante e intelectual. Oral, escrita e visual. E sinto, por vezes, uma espécie de arrepio na espinha com algumas «posturas» que vão vindo ao meu encontro.
Questões de gosto, talvez. Mas verdade é que nos meus dicionários caseiros, e são vários, só o Houais refere a “postura” com o significado tão em voga. Mas consta em todos a referida deposição dos ovos num ninho por parte de alguns animais, como as pitas da minha aldeia.
E com as pitas regresso à minha terra onde aprendi a andar e a sentar-me com a atenta vigilância de meus pais que, não tendo grandes estudos, possuíam uma sabedoria do inteiro viver e do viver direito. Nunca tinham frequentado os bancos duma escola de medicina, mas sabiam que, para salvaguardar a saúde, importava evitar determinadas posições corporais. A espinha dorsal era a grande preocupação, mas era também era uma questão de boa educação.
Era isso. A postura era das galinhas que a sabiam festejar com o canto característico. Os humanos não possuíam postura, mas importava que o posicionamento do corpo fosse direito. «Senta-te direito», era uma frase frequentemente ouvida, na casa dos meus pais e nas escolas por onde andei, mas não me lembro de ouvir, para tal, a palavra “postura”.
Mas é isso que também consta nos dicionários de hoje, como já constaria – não sei – nos dicionários dos meus tempos de menino quando me era ordenado para que me sentasse direito. Hoje sei que, aplicada aos seres humanos, a “postura” é a posição do corpo, é uma expressão fisionómica, uma atitude corporal. É o antigo “sentar-se direito”, expressão simbólica do “estar direito” corporal e social.
Há dias, no jornal Público, fiquei a saber que existia um hotel no Porto onde funcionava uma clínica para ajudar os músicos a «corrigir a postura que é assumida ao tocar, lidar com o medo do palco e demais fontes de ansiedade.» Não sou músico, mas li a reportagem com curiosidade e lembrei-me do “sentar-se direito”, do “estar direito” no corpo e na mente na casa de meus pais.
Como para os músicos, também para as crianças, adolescentes e jovens, importa salvaguardar as posturas mais correctas para não prejudicar a saúde nem criar dificuldades à aprendizagem. Lembro as velhas carteiras inclinadas e com um suporte para os pés dos meus velhos tempos de estudante e de como elas foram desaparecendo em benefício de mesas horizontais de onde desapareceu também o suporte para os pés. Ignoro a razão que terão levado os responsáveis políticos a proceder a tais alterações, mas possuo fundamentos para pensar que a mudança no mobiliário escolar não foi favorável à boa postura corporal dos estudantes, e, consequentemente, nem à sua saúde, nem ao seu aproveitamento escolar. Muitas vezes pensei nisso ao observar as posições que assumiam os meus alunos, debruçados sobre mesas horizontais. No final de um ano, retrospectivamente e olhando o futuro escolar, valerá a pena pensar em tal.
O assunto é científico e técnico e eu não sou fisioterapeuta, mas, apoiado na bibliografia caseira e num desdobrável da Associação Portuguesa de Posturologia Clínica e Dislexia, atrevo-me a tocá-lo pela rama como um músico na escola de um hotel onde aprende a assumir a melhor postura para tocar.
A história já possui quase meio século. Foi em finais da década de oitenta do século passado que se começou a falar de Síndrome de Deficiência Postural [SDP] que abarcava, para além de outros sintomas, a dor, o desequilíbrio e a dificuldade de aprendizagem. Problemas, aparentemente não interrelacionáveis, mas que tinham a mesma origem: problemas de percepção do próprio corpo. Técnicas posturais adequadas permitiriam eliminar aqueles sintomas.
De então para cá deu-se um passo de gigante. A SDP expressa um desequilíbrio do Sistema Proprioceptivo, sistema que informa o cérebro sobre o que se passa no nosso corpo. Os erros sistemáticos de postura desregulam este sistema e instala-se um programa cerebral incorrecto que induz acções erradas manifestas nos sintomas de dor, desequilíbrios e problemas de aprendizagem: dificuldades de atenção/concentração, de memorização, de leitura (dislexia), de compreensão do que se lê, de coordenação motora, de tolerância a períodos mais longos de leitura, dificuldades estas que podem ser acompanhadas de erros na escrita, de letra irregular (disgrafia), para além de fadiga persistente, hiperactividade e desorganização espacial.
Para onde nos levou a moda da “postura” e a postura das galinhas da minha aldeia! Mas espero que não tenha sido debalde. Talvez haja por aí alguém que precise de uma reprogramação postural, ainda que seja com o recurso a uma mochila adequada ou com a utilização de um leitoril e de um suporte para os pés para corrigir as “deficientes” mesas horizontais de uma escola qualquer ou da casa onde vivemos. Ou, quem sabe, de outros recursos. que só especialistas poderão receitar, para superar a postura deficiente a que facilmente nos podemos habituar. Aqui o hábito faz o monge. Viver direito dá que pensar.
Que “postura” tem o leitor sobre a postura assim olhada?
Guarda, 5 de Julho de 2023

Notícias Relacionadas