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Erro de palmatória ou manobra de diversão?

Histórias que a Vida Conta

Os sinais de desorientação por parte do Governo sucedem-se. O PSD, qual seu fiel-escudeiro, não lhe fica atrás. E, para ninguém se ficar a rir, o Presidente da República (PR), na sua zelosa atividade de para-raios do Executivo, continua a dissertar sobre tudo e sobre nada e decide mostrar o físico ao ser vacinado contra a gripe. Qual gravitas, qual carapuça! Um homem é um homem, independentemente de ser agricultor ou Presidente da República… Para quê cobrir o tronco com uma simples camisola interior?! Para quê mandar sair as câmaras para resguardar a sua privacidade?!  Marcelo recusa reflexões como esta, da autoria do Diretor do Público, Manuel Carvalho, no Editorial de 20 de outubro: “O poder democrático não deve dispensar a sua dignidade, nem a majestade que merece o papel de representar a soberania popular”.Mas o ponto de partida deste texto reside na peregrina intenção do Governo, anunciada por António Costa, no sentido de impor a obrigatoriedade de instalação da App StayAway Covid a todos os portugueses. Não sei o que mais admirar: se a óbvia desproporcionalidade da medida; se a sua mais que provável inconstitucionalidade por  violação da privacidade e do regime relativo à  proteção dos dados pessoais; se a desigualdade criada entre os portugueses que têm e os que não têm tecnologia compatível, isto é, entre quem tem smartphones que suportam a instalação da app e os que não têm nem podem ter acesso ao “luxo” desses dispositivos; se a violação da recomendação expressa da Comissão Europeia acerca da instalação voluntária da aplicação; se, enfim, a discutível eficácia do acréscimo dos níveis de rastreamento alcançados com a utilização da aplicação. Ainda que se defendesse que a garantia do anonimato dos rastreados seria compatível com o respeito pela intimidade da vida privada dos cidadãos, a instalação obrigatória da app imporia, por definição, a fiscalização do cumprimento da medida (de outro modo não seria obrigatória). Ora, essa fiscalização, segundo a proposta de lei, caberia aos agentes da GNR, da PSP, da Polícia Marítima e das Polícias Municipais, “pessoal” credenciado para muitas e diversificadas ocorrências mas de todo impreparado para esta missão. Ou seja, além de manifestamente incapaz de garantir tal cumprimento, essa fiscalização violaria inevitável e chocantemente o regime de proteção dos dados pessoais e não deixaria de provocar incredulidade e escárnio junto dos nossos parceiros da U.E. Acresce a circunstância de o Primeiro-Ministro ser um jurista de méritos conhecidos, além de dispor de assessores que não serão ignorantes em matérias constitucionais. Como é possível então que o Dr. António Costa tenha tido o desplante de anunciar essa medida, num momento e num contexto de grave preocupação social, com os níveis de crescimento dos infetados a crescerem todos os dias. Por tudo o que acabo de expor, ocorreu-me uma explicação mais verosímil e menos penalizadora para a inteligência do 1º Ministro e para a competência dos juristas que o assessoram: não se trataria de uma medida para levar a sério mas de uma manobra de diversão ou, como sugeriu José Miguel Júdice, um exercício de “chico espertismo”. E a verdade é que a cortina de fumo assim lançada pôs o país político e bem-pensante a falar durante uma semana da obrigatoriedade de instalação da aplicação, deixando de lado a panóplia das críticas ao Governo pela gestão atual da crise de saúde, bem como a problemática das outras medidas prioritárias para o combate à pandemia. Isto sem falar também das negociações entre o Governo e a esquerda à esquerda do PS para a aprovação do OE de 2021. E o certo é que desses problemas instantes não se falou na semana que acabou em 20 de outubro.Entretanto, o Governo anunciou o desagendamento da proposta de lei, avançando apenas a obrigatoriedade do uso das máscaras, oportunamente apresentada pela “mão amiga” do PSD. E Costa, sempre magistral no aproveitamento da conjuntura ainda ficou com o crédito de, com o safanão que deu, ter conseguido uma subida em flecha de carregamentos da app e de introdução dos códigos necessários para a sua utilização.Falemos então nós um pouco sobre os incómodos problemas escondidos durante oito dias por detrás do “magno disparate” da instalação obrigatória da app.As críticas aos responsáveis pela gestão do sistema de saúde subiram de tom à medida que, nas últimas semanas, se foi verificando o exponencial aumento das infeções. Criticas que têm partido generalizadamente de especialistas em saúde pública, bem como de muitos profissionais de saúde no terreno que sofrem na pele o aumento e a penosidade do trabalho, sem meios e condições à vista para a melhoria da situação. Com particular gravidade e acima de todas elas está a necessidade do reforço de meios humanos nas unidades de saúde pública, principalmente nos cuidados intensivos “que precisam já de 48 especialistas e 350 enfermeiros para aumentar as unidades de internamento” (EXPRESSO”, 17 de outubro, pág. 9). O Bastonário da Ordem dos Médicos, ao qual se juntaram cinco anteriores Bastonários, tem sido particularmente incisivo e insistente. Numa iniciativa louvável, o PR substituiu-se à Ministra de Saúde e já reuniu e vai continuar a reunir com altas figuras da área, tendo começado pela própria Ministra. Outras críticas têm incidido sobre variadas matérias, sem que se tenham recebido respostas á altura por parte do Ministério e das autoridades de saúde. Enunciemos algumas.Assim: (a) desde março que a Ministra Marta Temido não reúne com o Conselho Nacional de Saúde Pública (CNSP); (b) o plano integrado para o Outono-Inverno “ainda não está fechado” à data em que escrevo; (c) há manifestas incoerências por parte das autoridades de saúde nas medidas aprovadas no que se refere ao condicionamento das autorizações ou às proibições nos diversificados eventos nas mais diferentes áreas sociais; (d) faltam dados devidamente tratados sobre matérias importantes, como é o caso das doenças preexistentes mais prevalentes nos doentes de Covid 19 internados nos cuidados intensivos; (e) falta de explicação para as mais de 5.000 mortes ocorridas desde março, não atribuíveis à Covid; (f) atuação tardia do governo nos lares de idosos e desconsideração pelo conteúdo do relatório da Ordem dos Médicos quanto ao Lar de Reguengos de Monsaraz; (g) reflexos muito negativos no atendimento dos doentes “não Covid”, com mais de um milhão de consultas em atraso e 100.000 de cirurgias adiadas; (h) displicência ou, no mínimo, indiferença na articulação com os hospitais privados, sendo de perguntar se essa relação difícil e problemática por parte de Marta Temido não releva de preconceito ideológico, o que, a suceder, seria da maior gravidade, uma vez que, acima de tudo – e muito, muito acima das simpatias ou antipatias da Ministra – está a saúde dos portugueses. Lisboa, 21 de outubro de 2020

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