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Então eu já não mando nada, ou quê?

A vida está cheia de quadros simples que bem podem ser vistos como espelho da vida.
Foi numa esplanada situada no centro da cidade da Guarda. Duas senhoras, relativamente jovens, encontravam-se numa mesa quase ao lado da nossa. Tudo com a normalidade de uma qualquer manhã em que se pára aqui e ali para saborear um café ou se toma, talvez, a primeira refeição do dia enquanto se vão dando dois dedos de conversa matinal. A situação era tão normal que até então nem déramos pela presença daquelas jovens senhoras. Foi quando ouvimos, alto e bom som, uma delas, enquanto ia acenando com o braço, a dizer com energia inusitada para alguém que passava no passeio oposto:

  • Chega aqui. Faz-nos companhia num cafezinho.
    E, do outro lado da rua, do passeio um tanto escondido pelos automóveis estacionados, saía uma voz feminina apressada que, sem parar a marcha embora atrasando os passos, ia dizendo:
  • Bem gostaria, mas não tenho tempo, tenho os minutos contados. Estou cheia de pressa. Fica para outra vez. Obrigada.
    E, da esplanada, a insistência não se fez esperar:
  • Então eu já não mando nada? Deixa a pressa para outro dia. Anda aqui e faz-nos companhia com um cafezinho, que hoje pago eu.
    E, como do outro lado da rua parecesse não haver a correspondência desejada, insistiu ainda com maior sonoridade:
  • Então eu já não mando nada, ou quê? Chega aqui, mulher.
    Aquele «ou quê» a invocar autoridade, fosse lá que autoridade fosse, foi dito com tal energia e sonoridade que a ordem se impôs como se impõe o mandato do comandante de pelotão nos meses da recruta.
    O diálogo, de segundos, foi assim, literalmente, tanto quanto a memória pode ser fiel. Bem alto para também ouvirem as paredes do casario da rua, ou para o convite se sobrepor ao motor de um automóvel que, entretanto, se aproximou, passou e fugiu gastando as pedras da calçada.
    E o café, à mistura com efusivo cumprimento, foi tomado com a satisfação de saudável encontro de amizade antiga. Encontro breve, porém. Brevíssimo, mesmo.
  • Desculpai lá, mas já estou muito atrasada. Não tenho tempo, tenho mesmo de ir. Obrigado pelo café. Para a próxima, num encontro em que possa dispor de tempo, pagarei eu. Bom dia. Passai bem.
    E aquela jovem senhora, a olhar para o relógio, foi-se afastando como quem se afasta de um qualquer perigo iminente ou a tentar recuperar o tempo perdido naquela paragem imprevista. Ainda a olhar para o relógio e depois a acenar com uma mão, desapareceu ao dobrar a esquina.
    É bem de ver. O quadro é banal no dia-a-dia da vida moderna e todos já teremos assistido a situações semelhantes ou até já teremos passado por elas. Tão banal que nem nos damos conta daquilo que estas situações envolvem no modo de vida que levamos, situações que são o próprio modo de vida. A novidade, ali, estaria naquele «Então eu já não mando nada, ou quê?» Foi isso, pelo menos, o que, na altura, me chamou mais a atenção. E aquela jovem senhora, que não tinha tempo, acabou por gastar o tempo, à pressa, na companhia de outras duas que tomavam o café da manhã. E que também tinham pressa porque, logo a seguir, se levantaram e despediram-se enquanto dizia uma delas:
  • Vamos que também eu já estou atrasada. Não tenho tempo para mais conversas. Amanhã há mais.
    Estranho. Passamos a vida a dizer que não temos tempo quando a vida é precisamente o tempo que temos, como desde há muito o foram lembrando os filósofos. Medimos o tempo, mas esquecemos que, com tal, estamos a medir a vida. Só que nem nos damos conta de tal.
    Se o tempo é o tempo de vida, o que estamos a dizer quando dizemos que não temos tempo? Poderíamos, talvez, encontrar outras expressões equivalentes para a desculpa do momento, mas socorremo-nos frequentemente da falta de tempo. No fundo, sem darmos por tal, estamos a desculpar-nos incriminando o próprio tempo. Dizemos que não temos tempo quando, de facto, o tempo é aquilo que temos.
    Há verdades que de tão simples e vividas nem damos por elas. Há tantas e esta é uma delas. Viver poderá ser muitas coisas, mas será sempre ter tempo. Se dizemos que não temos tempo é porque temos tempo, porque estamos vivos na terra. Encontramo-nos a espelhar o tempo quando afirmamos que tempo não temos. E, espelhando o tempo, espelhamos a própria vida. É paradoxal queixarmo-nos daquilo que temos incriminando-o para nos desculparmos, como paradoxal é, em situações opostas, gastar o tempo para matar o tempo. Se viver é ter tempo, como se mata então o tempo?
    «Então eu já não mando nada, ou quê?», lançou ao vento, nesse dia, aquela jovem senhora como que a desafiar o tempo que não se tem, tendo tempo, de facto, se viver é ter tempo. Afinal, quem decide não ter tempo? Somos nós ou é o tempo que temos, não tendo tempo, como dizemos?
    Aquela jovem senhora que dizia não ter tempo para tomar um café com as amigas numa esplanada da cidade, despediu-se consultando várias vezes o relógio, tal como as outras duas olharam para as horas do telemóvel antes de abandonarem a mesa daquela esplanada também a lamentarem não ter tempo para mais conversas. Quem “manda”, afinal, no tempo que não temos, quando temos tempo?
    Cresci sem relógio e sem saber o que era um relógio. Creio que na aldeia não haveria então nenhum. Havia dias, quando o vento era favorável, que o relógio da torre da igreja matriz se fazia ouvir vindo lá da distância de alguns quilómetros. De resto eram os relógios naturais a mandar: os animais, a inclinação do Sol no horizonte e as sombras que ele fazia projectando imagens no chão ou nas paredes do casario. E sabia-se bem como elas iam variando conforme as estações do ano e as horas dos dias. Lembro-me que a criançada ia para a escola chamada pelo toque do sino da igreja local movido não sei por que força. Tive o primeiro relógio quando fiz o 5.º ano liceal por ter dispensado das provas orais nas duas secções, letras e ciências, como então se dizia. Foi prémio da minha falecida madrinha. E a vaidade cresceu. Com ele no pulso, passei a sentir-me mais gente. Hoje os bebés nascem a olhar para os relógios.
    Os relógios são uma omnipresença no nosso dia-a-dia. No pulso e no bolso de todos e em todos os lugares. Não daqueles relógios mecânicos presos por uma corrente dourada que fazia a vaidade de muitos. Não. O bolso de hoje são todos os lugares. Pego no telemóvel e lá estão as horas marcadas por um relógio digital que vai deixando permanentemente a minha pegada. Ligo o computador e lá estão as horas marcadas por um relógio escondido naquele mecanismo de que nada entendo. Sempre levamos o relógio connosco e, se não o levamos, lá estão outros relógios em todas as partes, em todos os lugares e espaços, a lembrar-nos que não podemos perder tempo, que o tempo sempre nos apressa.
    Com esta omnipresença dos relógios, o tempo exige presença como que a dizer-nos o que importa fazer sem atrasos para não perdermos tempo. Relógios aqui, relógios ali, relógios em toda a parte. «Então eu já não mando nada, ou quê?» Não, se nos descuidamos, já não mandamos nada no dia-a-dia da vida. É o relógio que manda em nós. O relógio que mede o tempo com que preenchemos a vida. Aquela vida que ela própria é tempo.
    Haja, ao menos, algum tempo de liberdade para nos pensarmos, já que a pressa tudo pode obscurecer.
    Guarda, 17 de Julho de 2024
    António Salvado Morgado
    morgado.salvado@gmail.com
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