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E

E quê? Perguntar-se-á. E, muitas coisas. E não estou a brincar. O “e” é muitas coisas. O “e” pode acompanhar tudo. O “e” é tudo.

Estranha palavra esta, mesmo assim para título de uma crónica de jornal, dir-se-á. Também eu penso de igual modo, mas, mesmo assim, ela aqui fica na sua simplicidade gráfica. É o título mais adequado, porque é o “e”, maiúsculo ou minúsculo, que, estranhamente, me tem vindo ao espírito nos últimos tempos. Mesmo não sendo gramático nem linguista. Que me perdoem os especialistas.
Aprecio imenso os malabarismos semânticos da nossa gramática. Ou de qualquer gramática. Mais elaboradas ou menos desenvolvidas, elas manifestam, creio bem, a filosofia natural do viver humano, a exigir adequada e sábia comunicação. Daí aquilo que alguns vão chamando “Filosofia da Gramática”, que não é uma simples “filosofia da linguagem”. Sem disso termos consciência directa, passeamos pelas palavras e pelas suas relações como passeamos pela vida. Ou, se alguém preferir; passeamos pela vida, ancorados no cajado das palavras e das gramáticas, embora a vida nunca possa ser plenamente traduzida pelas palavras por melhor que elas se possam articular com os meandros gramaticais. Passeamos pelo “e”, e, com ele, passeamos pelo mundo da vida.
Abstraindo do que a letra “e”, minúscula ou maiúscula, possa significar em vários domínios do conhecimento humano, como Geografia (com maiúscula, símbolo do ponto cardeal “Este”), Física (símbolo do “electrão” e da “energia”), Lógica (com maiúscula, símbolo de “proposição universal negativa”) e até Música (nota “Mi” nalguns países), interessa-nos aqui a dimensão gramatical. Neste âmbito, como pertença a uma classe, o “e” é uma conjunção coordenativa copulativa. Toda a gente o saberá, se não esqueceu completamente a gramática da infância. Foi assim que aprendi na escola primária. Como outrora se aprendia a gramática. Mais ou menos de cor, mas nem sempre com o coração. Aquele pequenino “e” vinha em primeiro lugar seguido de outras copulativas: “nem”, “que”, “mais” “não só… mas também”. A estas se vieram juntar outras nos estudos posteriores: “além disso”, “e ainda”, “por um lado … por outro”, “assim como”, “tanto… como” e “bem como”. E outras, ainda. Tudo sem grandes questionamentos.
Hoje vejo naquele “e” uma problematicidade bem emblemática da situação vivencial dos humanos. Coordenando dois ou mais constituintes do discurso, frases ou outras classes gramaticais, ela atribui valores à conexão assim criada, para além do valor aditivo, graças ao qual estas conjunções são também conhecidas, embora impropriamente, penso eu, como conjunções “aditivas”.
Com frequência encontramos nos jornais, sobretudo em artigos de opinião, títulos com duas palavras. O mesmo se passa em títulos de livros, alguns que fizeram história na literatura e no pensamento humano. No meio encontramos aquela copulativa “e” que pretende relacionar duas ou mais realidades, dois ou mais conceitos. Dois ou mais textos e contextos da vida. É nestas situações que a semântica do “e” explode em múltiplas vias significantes que passam tanto pelos mistérios da vida como pelos limites da nossa linguagem e que nem sempre os gramáticos conseguem cabalmente discernir, mesmo quando pretendem detalhar exaustivamente esses valores significados: conclusivo, adversativo, consecutivo, final, enfático, afectivo, paralelístico, condicional e temporal, para além do mais vulgar, o valor aditivo. Uma verdadeira fortuna significativa acompanha o “e” que vamos naturalmente utilizando todos os dias.
Os valores significantes dessa, aparentemente, insignificante partícula “e” assumem particular importância quando ela conecta dois conceitos com um elevado nível de abstracção. Não pretendendo impacientar o leitor, seja, como exemplos, “Ser e parecer”, “Lei e liberdade”, “Culpa e responsabilidade”, “Moral e justiça”, “Política e felicidade”, “Consciência e lei”, “Inteligência e pecado”, “Cultura e política”, “Ser e tempo”, “Ser e nada”, “Liberdade e segurança”, “Direitos públicos e interesses privados”, “Arte e fingimento”, “Trabalho e justiça”, “Lei moral e lei natural”, “Pensar e agir”, “Revolução e liberdade”, “Emoção e razão”, “Pensar e conhecer”, “Ciência e consciência”, “Ciência e sabedoria”, “Religião e violência”. Já chegará esta catadupa de exemplos, mas deixo ainda outros, aparentemente menos complexos, como “Estado e cidadãos”, “Olhar e ver”, “Opinião e verdade”, “Animais e pessoas” e “Ciência e tecnologia”. Ou, então, socorrendo-me de problemáticas da agenda política do tempo presente, seja ainda o exemplo de “Aborto e direito à vida”, “Direito à vida e eutanásia” ou ainda “Neutralidade educativa e ideologia de género”.
Ocorreu-me aquele título quando há dias, saturado de tantas imagens de guerra nas televisões e de tantas teorias da guerra que as têm acompanhado, me perguntei: e as teorias da paz, por onde andam? Que as há, há, e elas, explícita ou associadas à epopeia do Homem em demanda da sua natureza e felicidade, vão percorrendo a História, desde Platão ao Papa Francisco, passando, na modernidade, por E. Kant (1724-1804) com o ensaio «A Paz Perpétua» e pelos construtores iniciais da Comunidade das Nações e da Europa, nos tempos actuais. Mas elas parecem andar escondidas e envergonhadas. Ou, então, atordoadas e transidas de medo das bombas e mísseis, como Adão e Eva depois de perderem a paz do paraíso. Mas o certo é que as teorias da guerra ganham visivelmente às teorias da paz. E… porque será?
Talvez tenha sido sempre assim no ziguezaguear da História. Talvez tenha sido também por isso que Erasmo de Roterdão (1466-1536), embora sonhando com uma Europa espiritual unida e a viver em paz, tenha escrito a sua «Queixa da Paz». Sete anos após a publicação deste texto, viria a dizer, numa carta a um amigo, que «teria sido mais acertado escrever O Epitáfio da Paz, pois não restam quaisquer esperanças de que ela possa escapar com vida.»
Dado o lugar geográfico onde vem decorrendo esta maldita e malfadada guerra que tanto sofrimento e morte vem causando há já vários meses, naturalmente ocorreu-me – como terá ocorrido a muitos – o volumoso romance histórico do escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) «Guerra e Paz» que narra as vicissitudes da Rússia nas guerras napoleónicas. Que dirá aquele “e” no meio da “guerra” e da “paz” para título de uma das obras mais volumosos e complexas da literatura universal?
Como acontece sempre que se trata de pensar os grandes mistérios da ética existencial, o espírito especulativo balança entre duas perspectivas: a do “ser” e a do “dever ser”. Ou melhor do “ser do dever ser”, porque não encontramos um “dever ser” sem a luz do ideal do “ser”. Como é habitual, chamemos “realista” à primeira e “idealista” à segunda. Para a primeira a paz é um ideal inatingível. Sempre a guerra será necessária para a conquista e manutenção do poder. Para a segunda, para além dos jogos de poder, o Homem não pode ignorar o ideal de um “fim”. É a dimensão utópica do humano. Por isso, entre “realismo” e “idealismo”, situa-se a força da esperança. É ela que alimenta aqueles heróis e santos que, invisíveis, no silêncio e longe dos holofotes mediáticos, tratam os feridos, acolhem órfãos e viúvas, acariciam crianças e, diariamente, fazem dos necessitados o seu “próximo”.
Neste drama da guerra de que todos falam e da paz que é ignorada, ocorrem-me também duas obras do filósofo Merleau-Ponty (1908-1961): «O visível e o invisível» e o último texto escrito por ele pouco tempo antes de morrer, «O olho e o espírito». Passando por cima do conteúdo de qualquer destas obras – as asas livres do pensamento fazem destas maravilhas! -, dei comigo a associar o “olho” ao “visível” e à “guerra”, e o “espírito” ao “invisível” e à “paz”. A visibilidade da guerra, que diariamente nos entra pela porta adentro, contrasta com a invisibilidade do espírito da paz.
Digo “espírito da paz”, porque também há o “espírito da guerra” que é igualmente invisível. O “e” situado entre a “guerra” e a “paz” significa também discernimento de espíritos, aí onde se situa a esperança.
Guarda,12 de Julho de 2022

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