Esta crónica não era para ser esta, mas era para ser outra.
A outra desapareceu antes de aparecer. Por isso essa crónica ficará para outra oportunidade. Claro está, com algumas alterações e se a oportunidade surgir. É que as oportunidades nunca são as mesmas. São um pouco como a água corrente do rio. Nunca é a mesma por mais lenta que seja a corrente, embora o rio possa ser o mesmo. Se é que é sempre o mesmo. Já o diziam sábios da Grécia Antiga.
Mudam as circunstâncias, mudam as oportunidades. Esta crónica, que não era para ser esta, nasceu com novas circunstâncias e não a previa escrever. Mas não resisto, apesar de o assunto ter estado a ser muito falado. E escrito. Tardiamente embora, porque ele deveria ter sido tratado, e bem tratado, há 12 anos, ou, pelo menos, há 4, por nós, quando fomos todos embalados a aplaudir a caminhada portuguesa para um campeonato mundial de futebol a realizar em Catar. 12 anos de memória morta e 4 anos de adormecimento.
Há dias ouvi – todos teremos ouvido – que o Presidente da República de Portugal, do meu país, o Presidente da Assembleia da mesma República e o Primeiro-Ministro do Governo que governa a mesma, marcariam presença em Catar, embora à vez, nos três jogos da fase de grupos do Campeonato Mundial de Futebol. Ouvi e li o que não desejava ouvir nem ler.
A princípio nem acreditei, mas as informações iam-se desenvolvendo. O Presidente da República até nos convidou ao esquecimento: «O Catar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal. Mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa.» Já o Presidente do Governo da mesma República convida-nos à distinção: «Quando formos lá, não vamos seguramente apoiar o Catar, o regime do Catar, as violações dos direitos humanos. Vamos apoiar a selecção nacional, a selecção de todos os portugueses… estamos sempre com a nossa selecção.» Enfim, retóricas do outro mundo para justificarem as incongruências deste seu mundo de vaidades feito. Que isto, que aquilo, que aqueloutro. A esperteza do desejo sempre se pode contrapor à real inteligência humana.
Ainda esperei – como sou ingénuo! – que, mesmo com a autorização da Assembleia da República, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, ouvindo as críticas e apelos provenientes de tantos lados, viesse a desistir da viagem. Mas não, não desistiu. Não ouviu tais apelos. Ouvindo-se só a si, parece continuar a reforçar o que tristemente afirmou: «esqueçamos isto». Quando as mortes de tantos e a violação dos mais básicos direitos humanos se transformam num qualquer «isto» que pode ser esquecido e abandonado num qualquer canto como uma velharia qualquer, algo vai muito mal no reino da nossa República.
Estas foram as circunstâncias deste texto que não desejaria nem esperava escrever e que escrevo, sabendo embora que ele não será do gosto de muita gente.
A oportunidade foi a tarde de hoje, 24 de Novembro de 2022. Jogou Portugal com o Gana e fui olhando, como quem espia, para a televisão. Portugal ganhou. Mas não vi só o jogo, se é que foi o jogo que vi, porque não apreciei o espectáculo. Também vi, antes do jogo, o Presidente da República de Portugal preparado numa tribuna para assistir. A sorrir, triunfante. Também não apreciei. Vi a sua imagem, semeada ao vento mediático que penetra os quatro cantos do mundo, como que a legitimar, aos olhos de milhões, a repressão de uma monarquia absolutista.
Foi assim que aumentaram, hoje, as circunstâncias desta crónica. E a oportunidade tornou-se apelativa primeiro e explosiva depois. A crónica foi surgindo, explosiva também. Aqui. Num pedaço de papel onde a crónica é mais do que crónica. É um lamento. É um protesto. E creio – espero não ser aqui tão ingénuo – que comigo lamentam e protestam muitos leitores. Lamento escrevê-lo, mas o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa não me representou a mim nas bancadas daquele estádio. Nem estará a apoiar a selecção em meu nome. Quem apoia a selecção portuguesa é cada português, na sua casa, no clube do seu bairro, no café da sua rua. Se assim o entender, porque também há quem opte pelo boicote às transmissões televisivas.
Uma vez que a selecção portuguesa lá se encontra, neste “mundial da vergonha” como já tantos lhe chamaram, justifica-se uma representação estatal. Mas, sem desconsideração alguma pelos jogadores e equipa técnica, bastaria, para o efeito, um secretário de Estado do ministério que tutela o desporto.
Por ironia da História – a História está cheia de tantas ironias! – no dia 10 de Dezembro celebra-se o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Em pleno Campeonato Mundial de Futebol realizado em Catar cujos estádios – soube-se agora – foram construídos por trabalho escravo de gente proveniente do Nepal, Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka,
e em cuja construção morreram centenas de milhares de pessoas sob o peso do mesmo trabalho. E tudo, certamente, imagino eu, conforme a lei, as normas e os costumes do país. No trabalho e noutros âmbitos da vida humana. Tudo muito legal. Mas tudo muito contrário aos direitos humanos, muito contrário a um comportamento minimamente ético, muito contrário à dignidade da vida humana. Muitos crimes se podem cometer à sombra da legalidade, quando a cabeça não tem juízo ou os olhos não conseguem enxergar para além dos egoísmos e interesses de ocasião. Ou do dinheiro. Dinheirinho ou dinheirão.
Também são leis as leis do Catar. Não é só em nome da lei positiva que podemos salvaguardar os direitos humanos. Há outra lei mais forte que ela.
Quando se olha para o mundo legislativo dos humanos neste nosso planeta, encontramos uma variedade tão grande de situações que até parece que os Direitos Humanos são tão somente uma convenção social, variável, como todas as construções sociais, conforme os lugares e circunstâncias da cultura. Mas não, não podem ser uma simples convenção. Intuímos que, idealmente, não pode ser assim. Doutro modo perderia sentido, razoabilidade e autoridade qualquer crítica que nos atrevêssemos a dirigir contra leis e sistemas que dizemos abjectos, como aquelas que estamos a condenar no Catar. Haverá outra lei mais forte que a legalidade da lei positiva de qualquer Estado.
Bem lá no mais fundo e íntimo da razão humana tem de haver algo que nos aponte outro caminho, ou seja, um fundamento inabalável para os Direitos Humanos que ultrapasse uma visão meramente contratualista. Abstraindo da fundamentação numa lei divina, dificilmente encontramos outro fundamento que não seja aquilo a que vamos dando o nome de Dignidade do ser humano. Fundamento metafísico, é certo, e por isso não tem agradado a muitos, mas Dignidade inviolável que não pode navegar ao sabor das circunstâncias do momento ou das conveniências de qualquer partido ou movimento político. E aqui se inclui a nossa República.
Resta, por isso, uma esperança. A esperança de que, com o abanão que vem sendo dado às condições desumanas em que este mundial de futebol vem sendo realizado, fiquem as consciências mais despertas para a necessidade de salvaguardar, sempre, a Dignidade da vida humana. Nas nossas sociedades também, porque elas andam por aí ao sabor das ondas flutuantes de um relativismo tão ingénuo como grosseiro. Importa que se olhe para além da legalidade, seja nos areópagos internacionais, seja no gabinete de um primeiro-ministro, seja no de uma qualquer subalterna ministra, seja nos caminhos de vida de qualquer um de nós. Seja também num campeonato de futebol. Seja, até porque «Estarei a falar de direitos humanos no Catar.» Marcelo disse. E, quando Marcelo diz, faz-se.
Há mais vida, muito mais vida, para além da legalidade da lei dos Estados, escrita, em letra de forma, nos manuais de todos os tipos e feitios. É aquela vida que se alimenta, e se rege, por outra lei gravada pela natureza na consciência humana. Pode ser velha a ideia, mas isso não significa que ela não continue a definir a humanidade do Homem. E mal vai o ser humano, e a sua cultura, quando ela é abafada pelo «é legal» de qualquer conveniência de que já vamos estando cansados. O leitor, se não perdeu o Norte, saberá qual é essa lei.
Guarda,24 de Novembro de 2022.