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Do Pesadelo do Verão às Leituras de Férias

Histórias que a Vida Conta

Férias quentes, febris, quase tórridas… Não tanto pela temperatura ambiente, mas antes pela gravidade dramática de alguns acontecimentos inesperados!
Acima de todos os pesadelos deste Verão está o descalabro do império “Espírito Santo” e o colapso do próprio BES, com a separação entre um “Banco Bom” (o “Novo Banco”) e um “Banco Mau”. Lamentam-se as perdas dos pequenos accionistas, muitos dos quais chamados há ainda bem pouco tempo a um aumento de capital de uma instituição tida como segura e, até, modelar. Mas, em contrapartida, confesso que não choro os prejuízos dos grandes investidores institucionais, a começar pela própria “Família”, não só em virtude das suas graves responsabilidades no colapso, mas também porque têm seguramente “talentos e proventos” a bom recato, entesourados em “fortalezas” de difícil acesso. A definição judicial dessas responsabilidades impõe-se como um imperativo ético elementar num Estado de Direito, tendo presente a gravidade dos actos praticados e o cortejo das suas consequências funestas numa economia já tão debilitada. Penso mesmo que a Justiça já deveria estar a acompanhar o trabalho de levantamento e inspecção realizado pelas auditorias determinadas pelas entidades de regulação e/ou supervisão. Impõe-se, em matérias de tal dimensão e de tão grande complexidade técnica, que o Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária (PJ) não fiquem a aguardar passivamente a chegada das certidões que lhes sejam remetidas no termo dessas auditorias. Desde o momento em que hajam surgido os primeiros indícios claros da prática de actos geradores de responsabilidade criminal – e é manifesto ser esse o caso -, o trabalho de tais equipas de inspecção e auditoria deveria ser acompanhado a par e passo pelas autoridades judiciárias competentes.
Provavelmente será isso mesmo que está a ser feito. Se assim for, ainda bem… Mas, se o MP e a PJ continuarem, descansadamente, vivendo o seu “Verão” sem sobressaltos e aguardando a chegada das habituais certidões para só então darem início às diligências de investigação, algo continua mal, muito mal, no reino da Justiça!
Por mim, velho magistrado jubilado, sinto-me cada vez mais revoltado com a sucessão de trágicos e desesperantes eventos e das consequentes catástrofes sociais e económicas resultantes da gestão ruinosa e da irresponsabilidade de alguns patrões e padrinhos do “mundo da alta finança”.
Para minha autodefesa, continuo a refugiar-me na leitura. E, perante a triste realidade que vivemos, tenho-me entretido com a releitura de romances, novelas ou contos de alguns dos meus autores preferidos. Desta vez, reli “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, e o conto “José Matias”, do nosso Eça de Queiroz. Com algumas intermitências sempre perturbadoras, chamando-me ao angustiante contacto com a actualidade, consegui, ainda assim, descansar, por breves períodos, no universo mágico da boa literatura e no relato magistral de boas histórias.
Em “Gabriela”, bem como em “José Matias”, existe um ponto em comum: a narrativa de histórias de amor. Mas a semelhança acaba aí. Ao passo que Amado nos conta o amor sensual, feito de ternura mas também de desejo carnal do árabe Nacib e da sertaneja Gabriela, em “José Matias”, Eça traça-nos o quadro dramático de um amor platónico e destruidor: o de José Matias pela “divina Elisa”.
Não há qualquer semelhança entre, por um lado, a naturalidade maliciosa de Gabriela, a sua sensualidade à flor da pele, vivendo sem complexos o prazer dos sentidos e, por outro, a admiração veneradora de José Matias, a idealização doentia da mulher amada, em si mesma tão terrena, mas colocada pelo apaixonado num pedestal inacessível e fora da realidade. Gabriela, gostando de dormir “com homem moço, forte e bonito como seu Nacib”, “mas não com homem velho por casa e comida, vestido e sapato”.
Já José Matias, “rapaz airoso, louro como uma espiga, com um bigode crespo de paladino sobre uma boca indecisa de contemplativo”, preso de amores pela formosa Elisa, mulher casada com um homem muito mais velho – o Conselheiro Matos Miranda -, sua vizinha em Arroios, viveu na contemplação da sua amada, num “enlevo esplêndido, puro, distante e imaterial”. Decerto se escreviam e se encontravam na Quinta de D. Mafalda, tia do José Matias, onde habitualmente jantavam aos domingos o Matos Moreira e a “divina” Elisa. Mas nunca trocaram um beijo. Apenas, talvez, “algum aperto de mão fugidio e sôfrego”. Esse foi o “limite exaltadamente extremo que a vontade lhes marcou ao desejo”. Esse enlevo durou dez anos. Mas um dia, o Matos Miranda, morreu com uma pneumonia. E José Matias, sempre sensível às regras da delicadeza social, decidiu partir para o Porto, deixando Elisa fazer o luto com o recato devido ao seu estado de viúva. Pensaram os amigos que José Matias, um ano decorrido, a virtude recompensada, voltaria para a felicidade nos braços adorados de Elisa.
Mas estavam enganados. José Matias continuou pelo Porto. E, um dia, leram no jornal a notícia do casamento de Elisa Miranda com o conhecido proprietário Francisco Torres Nogueira. Ficaram os Amigos indignados com a falsidade, a inconstância, a “enganadora torpeza das mulheres e daquela especial Elisa. “Atraiçoar à pressa (…), apenas findara o luto negro, aquele nobre, puro, intelectual Matias – e o seu amor de dez anos, submisso e sublime!…” Eis senão quando são informados da verdade dos factos: Elisa tudo fizera para casar com José Matias: escreveu-lhe, deslocou-se propositadamente ao Porto, implorou… Fora ele quem recusara, de nada servindo o choro da mulher amada. Todavia, o amor dele por Elisa continuava o mesmo de sempre, infinito, absoluto. Mas recusou o casamento! Rejeitada, ela casou então com o Torres Nogueira, continuando a viver na mesma casa apalaçada que herdara do primeiro marido. E José Matias, regressado a Lisboa, voltou a espiar, da varanda do seu quarto, os jardins da casa de Elisa. A paixão mantinha-se inalterada, continuando José Matias “devotadamente crente de que Elisa, na profundidade da sua alma, (…) o amava a ele, unicamente a ele, e com um amor que não deperecera…”. Matias, esse “ultra-romântico, loucamente alheio às realidades fortes da vida” tornou-se um viciado no jogo, assim delapidando o património, ao mesmo tempo que se transformava num alcoólico sem remédio.
Mas Torres Nogueira, o segundo marido de Elisa, também morreu. Ela foi fazer o luto para Beja, em casa de uma familiar. E quando, passado algum tempo, regressou a Lisboa, não veio sozinha. Elisa tinha agora um amante. Já na casa dos quarenta, foi viver para um andar na Rua de S. Bento. Também ela deixara de ter disponibilidade para manter o anterior status.
E o que aconteceu a José Matias? Imerso no seu inesgotável amor, sem tecto e quase sem roupa, mal alimentado e doente, com a inseparável garrafa de aguardente, passou três anos encafuado num portal … em frente da casa de Elisa!
Até que a doença o venceu.
Por estranho que pareça são afinal três histórias de amor: uma de ganância, amor funesto; as outras de amor do peito – que a vida, os tempos e a sorte teceram diversamente.

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