Há muitos dias que são “meus”. Bem, todos os dias da minha vida são “meus”. Todo o mundo poderá dizer o mesmo.
Mas há dias que são “especialmente meus”. Também toda a gente o dirá. Há dias, porém, que são “especialmente meus” e não são “especialmente” de toda a gente, porque nem todos têm esse dia. Em Agosto há um dia “especialmente meu”. É o meu dia, se assim me posso expressar. E de mais alguns, mas não de todos. Talvez seja de muitos noutros horizontes geográficos, mas não creio que assim seja nos horizontes de cá. De Portugal do séc. XXI.
Sou Filho do Meio e aí está o meu dia, o Dia do Filho do Meio. Não estou sozinho nesse dia. Em família encontro-me bem acompanhado. Somos seis Filhos do Meio numa sequência fraterna de oito.
É bem de ver. Para se ser Filho do Meio é preciso que haja três irmãos, pelo menos. Estar no meio significa estar entre. Se forem só três irmãos, o do meio, além de Filho do Meio, é Filho do Meio único. Mas, se os filhos forem muitos, então haverá vários Filhos do Meio. E nunca esse estatuto se perde. É isso mesmo: uma vez adquirido tal estatuto, é-se Filho do Meio para sempre. Simplesmente o primeiro Filho do Meio vai ficando mais acompanhado à medida do nascimento de irmãos mais novos. O primeiro nunca perderá o estatuto de primeiro filho, mas nunca poderá ganhar o estatuto de Filho do Meio. Mistérios da matemática e do espaço temporal. E da unidade familiar, principalmente.
Há dias celebrativos para tudo. Tantos que os vamos ignorando. Um “tudo” onde também cabe um dia para o Filho do Meio.
Só recentemente descobri que havia o Dia do Filho do Meio. Pelo menos, só agora a minha memória o assumiu como tal. É a 12 de Agosto. Curiosamente, assinala-se também nessa data o Dia Internacional da Juventude.
Pela primeira vez tive a alegria de celebrar o meu estatuto de Filho do Meio. É uma glória que nem todos têm. Não sei quando, nem onde, nem por quem, nem por que razão foi instituído o Dia do Filho do Meio. E nem sei se estará ele muito divulgado e qual a razão de ser escolhido o dia 12 de Agosto. Bem, isso pouco importará. O que importa agora é que há o Dia do Filho do Meio. E que esse dia é também meu.
Para superar a minha ignorância e satisfazer a curiosidade, já que o assunto me dizia respeito também, Filho do Meio num grupo de oito irmãos, procedi a uma pesquisa sobre o assunto pelos meios disponíveis. E, já se vê, consultei também o “google”, esse sábio dos tempos tecnológicos que está sempre à mão. Literalmente, sempre à mão. Isto é, “teclei” e “googlei”, como diz o outro. O outro que eu já ouvi mais de uma vez. Tantas vezes. E o que fiquei a saber nada tem a ver com o que eu imaginei quando soube da existência do Dia do Filho do Meio.
Por onde é que andam os Filhos do Meio neste Portugal pequenino? É raro encontrar um casal com três ou mais filhos no nosso país. Ser Filho do Meio é uma espécie rara em vias de extinção. Uma ave raramente vista que deveria ser protegida como aquelas espécies, animais ou vegetais, que vão desaparecendo da face da terra.
Passei recentemente uns dias de férias numa praia de areal a perder de vista, água suave e tranquilidade de veraneantes, onde o mar deixa espaço, sobretudo nas marés baixas, para as crianças fazerem castelos de areia e os adolescentes poderem dar uns chutos numa bola. Ali, na praia, nas ruas ou em espaços de restauração, encontrei alguns casais com três filhos. Todos casais estrangeiros. Não descortinei nenhum casal português. Melhor. Cruzei-me na rua com um jovem que se fazia acompanhar de quatro crianças. Iam apressados e não consegui saber se eram portugueses e se eram todos irmãos. Encontrei, sim, um ou outro casal com dois filhos, mas não havia Filho do Meio.
Foi a pensar nesta realidade, visível naquela praia como visível é nas nossas escolas e nas ruas das nossas terras, aldeias, vilas ou cidades, que dei por mim a imaginar, ingenuamente, que a instituição do Dia do Filho do Meio seria um modo de promover os Filhos do Meio no quadro de uma política de natalidade. É que vem-se acentuando o grave problema demográfico em Portugal, de que se fala de vez em quando, mas que os governos não têm tido a coragem de enfrentar. Entretanto, já terá sido ultrapassado há muito o limiar mínimo para a renovação das gerações.
Foi em Julho de 2014. Designada pelo governo de então, a Comissão para a Política de Natalidade em Portugal, constituída por onze personalidades de várias áreas disciplinares, tornava público o relatório final. Com o título “Por um Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade (2015-2035)”, apresentava-se com o sub-título “Remover os obstáculos à natalidade desejada”. O documento era o resultado de seminários realizados em várias cidades de Portugal, de propostas solicitadas aos partidos com assento parlamentar e às centrais sindicais, contando ainda com o contributo de cidadãos que, no exercício dos seus direitos e deveres cívicos, quiseram participar. Já passaram oito anos e nunca mais ouvi referir tal relatório. E, no entanto, de tempos a tempos, fala-se do problema demográfico português.
Terá acontecido com este relatório o que vem acontecendo com outros do mesmo género no nosso pobre país cujos políticos vivem para o imediatismo da conquista e manutenção do poder, mas a quem vem faltando o sentido de Estado, do futuro e a responsabilidade perante as gerações vindouras. Nomeia-se uma comissão, a comissão faz o seu trabalho e apresenta diagnósticos e linhas de acção. Passado algum tempo – bem pouco, tantas vezes – os relatórios desaparecem como por encanto. É o que vem acontecendo também a manifestos e documentos de associações ou grupos de cidadãos que vão surgindo frequentemente com propostas estratégicas para a reforma do Estado mas a que os responsáveis governantes fecham os olhos, por arrogância, por ignorância, por cobardia, por imediatismo governativo ou por interesses partidários e pessoais. Mas sempre sem visão do futuro. E assim se consomem as energias de um povo e se perde a confiança nas instituições de um país.
Foi nisso que pensei quando soube que havia o Dia do Filho do Meio. Mas o que acabei por encontrar foi que o Dia do Filho do Meio fora criado – não consegui saber por quem – para trazer à memória dos pais a síndrome do Filho do Meio que importa combater, dizem. Ou seja, o Dia do Filho do Meio foi instituído por razões puramente psicológicas e pedagógicas. Há um problema específico dos Filhos do Meio. Dizem. É o lado psicológico. Há, portanto, um problema pedagógico para os pais e educadores. Saber lidar adequadamente com a situação específica dos Filhos do Meio. O Dia do Filho do Meio é um mimo e uma homenagem a todos os Filhos do Meio que sofrem no silêncio do seu íntimo a situação em que se encontram por estarem no meio. Até há quem lhes chame “filhos sanduiche”, entalados que estão entre os privilégios concedidos aos filhos mais velhos e os mimos dados aos mais novos. Nunca tiveram a atenção paterna toda virada para eles. Quando vieram ao mundo, já a atenção se encontrava partilhada com os mais velhos e os mimos de mais novos logo os perderam com o nascimento de novo irmão.
Eu, que sou Filho do Meio, não me lembro de alguma vez ter passado por qualquer síndrome daquilo por que passam estes “filhos sanduiche”, sofredores silenciosos, como que esmagados pelos irmãos mais velhos e mais novos. Mas que tal síndrome existe, existe, dizem por aí os entendidos. E até é objecto de estudos especiais e teorias psicológicas. E diz-se, também, que há muitas vantagens em ser Filho do Meio como a autonomia e a facilidade de adaptação a novas situações.
Mas, quando num país não existem Filhos do Meio e fecham os serviços de ginecologia e obstetrícia, não terá sentido lembrar aos pais e educadores a importância de combaterem aquela síndrome. A não ser que os nossos governantes, olhando para o Dia do Filho do Meio num Portugal vazio, tenham a coragem de enfrentar o futuro e abandonem o pensamento miudinho que só enxerga o futurinho.
Guarda,12 de Agosto de 2022