Numa semana fértil em acontecimentos a nível interno e externo, elegi como os mais importantes a morte de Mikhail Gorbatchov, do ponto de vista internacional e a demissão da ministra da Saúde, Marta Temido, a nível interno.
Gorbatchov foi um dos raros homens de Estado que deixaram uma marca indelével na História. Marta Temido foi uma política como muitas outras, que a memória dos portugueses não vai guardar durante muito tempo, apesar de ter sido a ministra-fétiche de Governos de António Costa. Colocar, lado a lado, um gigante da política e uma pequena e efémera governante de um pequeno país do extremo ocidental da Europa, resulta de um acaso de datas, que não de uma deliberada intenção do autor. Mas permite avaliar os resultados destes agentes da ação política sob uma perspetiva diferente e, talvez, mais original.
Nem o impacto da personalidade e da obra realizada por Gorbatchov lhe rendeu dividendos a nível nacional, tendo deixado um clamor de críticas e, até, de desprezo entre os seus concidadãos pelas contribuição que atribuíram à sua liderança para a queda da URSS, o declínio do comunismo no mundo e a perda de importância e de prestígio da Rússia no panorama internacional; nem a pequenez da generalidade da missão de Temido à frente do Serviço Nacional de Saúde, a sua intolerância para as pretensões e reclamações dos profissionais de saúde, tão castigados pela pandemia e a sua consabida teimosia ideológica, o desvalor atribuído ao setor privado, o caos a que deixou chegar, mormente no decurso dos último meses, as urgências hospitalares, maxime na área tão sensível da ginecologia e da obstetrícia, nem tudo isso impediu que os media tenham elevado Marta Temido ao patamar de um possível delfim de António Costa. Portugal é de facto um País com critérios de avaliação muito elásticos e condescendentes… Razão tem o povo quando afirma que “mais vale cair em graça …”.
Que os comunistas portugueses, duros e ortodoxos, considerem Gorbatchov um traidor aos ideais comunistas e aos “amanhãs que cantam”, até percebo; que os socialistas portugueses aclamem a condução de Graça Temido à frente do M. S. e do SNS, bem como na luta contra a pandemia, custa-me muito a entender. É certo que a vacinação foi um processo coroado de êxito. Mas isso deveu-se aos militares, e, em especial, à liderança disciplinadora do Almirante Gouveia e Melo. Isto porque, como bem se sabe, antes da sua designação como responsável pelo processo de vacinação, ou seja, no tempo – felizmente curto – em que tal liderança esteve a cargo de um médico do aparelho socialista, foram-se sucedendo as arbitrariedades, os arranjismos, o fenómeno do amiguismo em todo o esplendor, a que o Almirante pôs termo imediato, com severidade e rigor. Marta Temido nunca fez um esforço sério para ouvir as classes dos profissionais de saúde. Aos médicos apelidou-os de “pouco resilientes”. E, quanto a resultados na luta contra a COVID – respeitando sempre o seu esforço e energia -, não se pode esquecer que Portugal atingiu, em começos de 2021, a posição mais elevada do pódio dos países europeus, em sede de níveis de transmissão do vírus e de fatalidades. Quem se esqueceu das filas de ambulâncias às portas dos hospitais de Lisboa (e não só), aguardando vez para fazerem entrega dos doentes que transportavam? Quem se esqueceu da concentração quase exclusiva dos serviços de saúde no combate contra a Covid, deixando terreno aberto para o desenvolvimento de outras patologias cujos diagnóstico e tratamento foram descurados? Quem não tem presente que o número de portugueses sem médico de família (que, segundo a promessa feita pelo Governo seria de zero no fim da legislatura) passou de 700 mil para o dobro? Quem se esqueceu da recomendação – ainda que pretensamente humorística – da inefável Diretora-Geral de Saúde, Graça Freitas, aconselhando os portugueses a que não adoecessem no Verão, que “o mês de agosto não é bom para se estar doente” (sic)?
A saída do governo, por sua iniciativa – decisão lúcida e que se louva -, deve-se ao facto de, apesar da sua indiscutível resiliência, ter concluído que a sua missão tinha fracassado: não tinha apoios entre os médicos nem entre os enfermeiros e demais profissionais de saúde, perdeu a boa imprensa que a acompanhou enquanto esteve em alta, até que acabou por perder o suporte político no Partido e no próprio Governo, a começar pelo confiança do 1º ministro, que deixou de a apoiar e para quem, de “menina mimada” passou a ser uma governante convencida e incómoda. Praticou sempre um método de comunicação autocrático, mostrando-se avessa às parcerias público-privadas e evitando, até ao limite da racionalidade, recorrer à colaboração do setor privado. Com a sua conhecida contundência verbal, Miguel Sousa Tavares (MST), na sua crónica no EXPRESSO, de 2 de setembro, escreve o seguinte: “Creio que não me lembro de alguma vez ter visto tamanha incompetência governativa beneficiar de tamanha indulgência jornalística como no caso de Marta Temido”.
Quanto a Gorbatchov, MST qualifica-o como “o último dos líderes”. Foi o homem- escreve ele – “que tornou possível o sonho impensável – pôr fim à Guerra Fria, desmantelar a URSS, derrubar a Cortina de Ferro, devolver a liberdade e a soberania a inúmeras nações do Leste e do Cáucaso, permitir a reunificação da Alemanha e iniciar um processo de desarmamento nuclear com os Estados Unidos (depois posto em causa por Trump e hoje interrompido) que nos garantiu mais de 40 anos de paz” – ver EXPRESSO citado, pág.3.
Gorbatchov tentou o impossível: “permitiu a liberdade de expressão, a de associação política e a propriedade privada”, tentando “reformar o que já não era reformável, mantendo dentro da esfera soviética o que já não era possível (ali) conter”. Quem não acompanhou as mudanças que Gorbatchov sonhou e tentou implementar quando atingiu o comando da União Soviética, terá provavelmente dificuldade em entender esta verdade: “ele sozinho mudou a história do mundo” – cfr. David Pontes. “Gorbatchov “descongelou” a história, mas não o PCP” – Público, 1 de setembro, pág.6.
Claro que tenho como certo que Gorbatchov não previu – nem desejava – todo o cortejo de consequências que se sucederam após a implementação da perestroika. Mas concordo na generalidade com a perspetiva segundo a qual o Ocidente não esteve à altura de Mikahil Gorbatchov, tendo, nas palavras de MST, “falhado o encontro com a História para que este homem providencial o convocara (…)”. O que se seguiu – a liderança sem norte de Ieltsin e o sonho do regresso imperialista da Rússia de Putin são, em certa medida, consequências da revolução conduzida sob a condução de Gorbatchov. E Vladimir Putin pensa que o fim da União Soviética foi uma tragédia. Não sendo ele um comunista, penso que se refere mais concretamente ao fim do império russo, que foi soviético, mas que ele pretende, hoje, restaurar, vasto e despótico, como nos tempos da Mãe-Rússia.
Lisboa, 6 de setembro de 2022