Os dias da cidade
É inato ao ser humano querer conhecer mais do que aquilo que sabe. Sempre assim foi desde os primórdios e esse foi muitas vezes o motor do progresso. Os pensadores sempre deram relevo à identidade dos povos baseados na cultura que esse mesmo povo demonstra. Em épocas de crise os valores e a cultura são postos de lado e dá-se mais importância a tradições popularuchas que entretêm “o povo vão”. O que, recorde-se, não é uma técnica recente pois já Nero, em Roma, vulgarizou o panem et circenses. E, nessa mesma Roma, o grande poeta Horácio inicia uma das suas odes com o célebre incipit: “odi profanum vulgus” (odeio o vulgo profano) desprezando o aplauso dos não instruídos e privilegiando o daqueles que tinham instrução. Além disto querer dizer que as técnicas de condução dos povos não evoluíram desde a Roma imperial, faz-nos ainda voltar aos tempos do salazarismo em que se defendia um povo inculto para não ter a veleidade de pensar.
O conceito de cultura também é relativizado com o tempo e muda de acepção, ou melhor, de entendimento da palavra em si. O nosso Eduardo Lourenço, um dos nossos maiores pensadores vivos, numa entrevista à jornalista Anabela Mota Ribeiro, em 2003, afirmava que “A cultura serve para nos despir de toda a arrogância, particularmente essa que consiste em imaginar que, sendo cultivados, encontramos Deus. A cultura é um exercício de desestruturação, não de acumulação de coisas. É uma constante relativização do nosso desejo, legítimo, de estar em contacto com aquilo que é verdadeiro, belo, bom. É esse exercício de desconfiança, masoquista, de desencantamento. Só para que não caiamos no único pecado, que é verdadeiramente o pecado contra o espírito: o orgulho.” Ora, hoje em dia, vemos, ouvimos e lemos, todos os dias, por esse país fora, iluminados que em vez de despirem a arrogância, como sugere o pensador, se arvoram em deuses e donos do saber desprezando aqueles que fazem algo para mudar a sociedade e pôr as pessoas a pensar. Quanto mais as sociedades são analfabetas, mais facilmente são manobradas pelos detentores do poder. Enquanto o vulgo anda entretido com programas de tv ridículos, copiados indecorosamente de outros países e veiculando a vacuidade de ideias e realçando o que é degradante para o ser humano, os governos podem impunemente fazer leis e promover impostos que ninguém dá conta. Pense-se, por exemplo, no movimento dos coletes amarelos e no desinteresse geral manifestado no nosso país e compare-se com a adesão que tem tido em França.
Afinal, isto no povo português não é inusitado porque gostamos mais do que é anormal ou mais fácil do que aquilo que é adquirido pelo trabalho e com suor. Gostamos mais do Sancho Pança, virado para a barriga, do que de D. Quixote, virado para as ideias. Embora, por outro lado, somos muito quixotescos e gostamos de idealizar sonhos que não nos servem para nada. Voltando ao nosso pensador e à entrevista citada: Poucos povos serão como o nosso tão intimamente quixotescos, quer dizer, tão indistintamente Quixote e Sancho. Quando se sonharam sonhos maiores do que nós, mesmo a parte de Sancho que nos enraíza na realidade está sempre pronta a tomar os moinhos por gigantes. A nossa última aventura quixotesca tirou-nos a venda dos olhos, e a nossa imagem é hoje mais serena e mais harmoniosa que noutras épocas de desvairo o pôde ser. Mas não nos muda os sonhos.
Mas e a cultura? Vamos mudando continuamente de valores e ideias, porém ultimamente Portugal anda um pouco vendido a valores estrangeiros impondo padrões de cultura que não nos dizem nada da nossa identidade nacional. Há dias, o actor José Raposo, queixando-se da falta de apoio ao teatro, afirmava: “Um povo sem cultura é um povo desgraçado. A cultura é o espelho do povo e nós nesse aspeto estamos muito mal. Nós regredimos, o que é uma coisa estranhíssima, devíamos era ter progredido muito.” Para quê dizer mais? Quem vê o que se passa em Portugal, vê o que se passa no seu povo.